O Piauí tornou-se um dos estados brasileiros em que a união estável entre casais homossexuais foi reconhecida pelo Poder Judiciário. Em sentença assinada no último dia 27 de janeiro, o juiz Antonio de Paiva Sales, da 4ª Vara de Família e Sucessões da Comarca de Teresina, reconheceu a existência de união estável entre duas mulheres que viveram juntas, em uma relação afetiva, por mais de dez anos. Apesar de já ser um entendimento pacificado no Judiciário de alguns estados brasileiros, tratava- se de uma decisão até então inédita no Piauí, informou o Portal do Dia.
O reconhecimento da união estável homoafetiva significa que o juiz identifica o vínculo estabelecido entre as duas mulheres como uma relação familiar, que deve ser amparada pelas regras cabíveis ao Direito de Família, da mesma maneira como já acontece com a união estável entre casais heterossexuais. "Esse casal de mulheres estabeleceu um vínculo amoroso duradouro, contínuo, com fim familiar e estabelecendo um patrimônio comum. É tudo o que caracteriza uma união estável entre heterossexuais. Não há razão para o Judiciário promover uma diferenciação entre casais héteros e homoafetivos nessa situação. Isso iria contra todos os princípios básicos do nosso ordenamento jurídico, como os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana", esclarece Igo Sampaio, defensor público que representou a ganhadora da ação de reconhecimento de união estável.
A principal beneficiada por essa decisão não aceita mostrar o rosto, mas não quer perder a chance de contar a sua história. Identificada apenas por suas iniciais, M.T.O.C, 38, ainda comemora a vitória conquistada após mais de três anos de um desgastante processo, em que teve de expor para juízes e testemunhas detalhes de sua vida privada e escancarar a sua intimidade. Tudo para comprovar a união afetiva que manteve por uma década com quem hoje o Judiciário já reconhece como sua companheira. "Eu sei o que eu sou, o amor que eu vivi, a história da minha vida. Mas tive que provar para a sociedade isso tudo, expor não só a mim, como a memória dela. Foi tudo muito triste e constrangedor", afirma M(...).
O problema todo surgiu quando, após anos de relacionamento, M(...). foi surpreendida pelo diagnóstico de uma grave doença em sua companheira. Um tumor no cérebro começou a gerar incapacidades e, após um ano de piora progressiva, ocorreu o falecimento. "Nos últimos seis meses, ela já havia perdido quase todos os movimentos e estava bastante dependente de mim", relembra. M(...) ainda não sabia, mas a morte da companheira com quem dividiu grande parte da vida seria só o início de uma fase bastante conturbada.
Apenas um mês após o falecimento, no ano de 2008, os irmãos da companheira vieram até a casa que M(...) dividia com ela para exigir o imóvel. "A casa sempre esteve no nome dela, mas nós morávamos aqui, juntas, desde o início do relacionamento. A família dela sempre soube da nossa condição. Eles exigiam que eu saísse naquela mesma hora. Começaram a recolher e levaram embora todos os meus móveis. Consegui o prazo de um dia e dei parte na polícia. Depois disso, eles ingressaram na Justiça, abriram inventário e até mudaram o registro da casa para o nome da mãe deles. Todas essas ações depois foram suspensas pela Justiça",conta. Foi para tentar resguardar a posse da casa onde vivia há mais de dez anos que M(...) ingressou com a ação de reconhecimento da união estável homoafetiva.
"Hoje em dia, eu nem me importaria de deixar essa casa, se fosse necessário. Mas naquela época isso não era só uma casa. Eu ainda estava lidando com a morte dela e essa casa, onde a gente viveu por tanto tempo, era o meu refúgio, o meu espaço para tentar superar essa perda", revela. Agora, com a comprovação de sua união estável em mãos, M(...) parte para um novo processo em que buscará sua participação na divisão de bens da companheira. Mas nada garante que essa peleja judicial tenha realmente chegado ao fim. "A família da companheira falecida ainda pode recorrer da decisão de reconhecimento da união estável homoafetiva, e, neste caso, a questão terá que ser discutida pelo Tribunal de Justiça do Piauí. Mas nós temos um conjunto de provas muito poderoso e temos confiança de que vamos ver esse reconhecimento também pelo TJ", acredita Igo Sampaio, defensor público que representa M(...).
Material originalmente publicado no Jornal e site Abalo, dia 14/02/2011.
Nenhum comentário:
Postar um comentário