domingo, 14 de fevereiro de 2010

Edson Néris é cada um de nós




No dia 06 de fevereiro de 2000, há dez anos, um homossexual chamado Edson Néris da Silva foi brutalmente assassinado por uma gangue de skinheads na Praça da República, centro de São Paulo. O motivo? Passava pela praça de mãos dadas com seu namorado Dario Pereira Netto. Bastou isso, para um bando de mais de trinta "carecas" voassem em cima dos dois munidos de correntes, soco inglês, chutes e pontapés. Dario conseguiu fugir, mas Edson foi espancado até a morte.

Um vendedor ambulante que estava no local e presenciou tudo, foi o ser humano que agiu como o "bom samaritano" da parábola dos evangelhos. Seguiu o grupo até um bar no bairro do Bexiga, onde tranquilamente tomariam cervejas, provavelmente comemorando o ato. Ele telefonou para a polícia, que cercou o bar, prendendo cerca de vinte dos integrantes do grupo "Carecas do ABC". Desses vinte, apenas três foram condenados, dois deles a vinte e um anos de prisão; dez anos depois todos estão soltos.

O promotor Dr. Marcelo Milani que ofereceu denúncia contra os três réus foi considerado, por muitos, um herói na época. Durante todo o processo ele conduziu o crime praticado pelos carecas como um crime de ódio, tipologia criminal inexistente no Brasil. É dele a frase que ficou famosa: "Se os carecas podem andar pelas ruas com suas camisetas, botas, anéis que os identificam como neonazistas, os homossexuais também podem andar de mãos dadas". Não tenho dúvidas: não fosse a linha de acusação que o Dr. Milani tomou, este caso seria mais um impune no nosso país.

O crime correu nas manchetes de jornal, revistas (a revista Época ganhou um prêmio de uma importante ONG LGBT pela cobertura do caso) e órgãos internacionais de Direitos Humanos acompanharam de perto e com atenção o caso, tudo isso devido ao intenso trabalho da militância do Movimento Homossexual Brasileiro (MHB). De Norte a Sul do Brasil, discutia-se questões como orientação sexual, direito das minorias e a palavra homofobia entrou para o dia-a-dia dos meios de comunicação e no linguajar político da militância.

Dias após o crime, um grupo de quinhentas pessoas se reuniu na Praça da República para uma vigília em memória de Edson Néris; contudo, um grupo bem maior de homossexuais a poucos metros dali, na Av. Vieira de Carvalho, levava a vida como se nada tivesse acontecido, curtiam a noite com gargalhadas e cervejas e se recusaram a participarem do ato, segundo denúncia do nosso premiado escritor João Silvério Trevisan em artigo escrito naquele contexto. Neste artigo contundente em que denunciava também o oportunismo e as divisões dos grupos da militância LGBT numa disputa que Trevisan chamou de "inflação fálica", o autor afirmava: "Edson Néris é cada um de nós".

Dois anos antes do assassinato brutal do nosso adestrador de cães (essa era a profissão do Edson), no dia 12 de outubro de 1998, falecia no Hospital Proude Valley, no estado do Wyoming, EUA, o estudante universitário Matthew Shepard (foto). Matthew foi torturado e espancado por dois jovens. Motivo? Era gay tal como o nosso Edson Néris.

Poucas são as diferenças entre Shepard e Néris: econômica, social, geográfica. Muitas as semelhanças: ambos eram cristãos; o americano era evangélico e Néris era mórmom; ambos gays e ambos foram assassinados por serem homossexuais. As consequências da morte traumática de ambos abrem um imenso abismo entre os dois: o americano, além de milhares de sites em sua memória, fundações em defesa dos direitos humanos LGBT, memoriais erguidos que recordam à sociedade o que aconteceu para que não se repita o mesmo ato hediondo, três filmes e uma lei com seu nome, o "Matthew Shepard's Act", assinada em outubro de 2009 pelo presidente Barack Obama. A lei, inédita nos EUA, criminaliza a homofobia.

Do lado debaixo do Globo, Edson Néris não ganhou nenhum site em sua homenagem (busquei sem sucesso no Google); nenhum memorial, por mais que Ricardo Aguieiras tente até hoje, foi erguido; nenhum filme, nem sequer um documentário... Sim, existe o Instituto Edson Néris, mas você que é LGBT e que não faz parte da militância sabia dessa informação ou sabe quais são as atividades do IEN? Por que ainda não temos um memorial ao Edson conforme noticiado aos quatro ventos na primeira Conferência Nacional LGBT? O mármore rosa já foi garantido pelo Grupo Gay da Bahia, estado de origem da família do Edson. Por que ainda não foi construído? Por que nenhum cineasta se interessou pelo caso para fazer pelo menos um documentário? Por que a Câmara de Vereadores de SP ou a Prefeitura de SP ou o Governo do Estado de SP nada fizeram até hoje em homenagem ao Edson? Nem mesmo a Lei 10.948/01, que trata da penalização por atos homofóbicos no estado de SP, leva o nome da vítima assassinada no mais emblemático caso de crime de ódio praticado neste estado!

Nos EUA, onze anos depois do assassinato de Matthew Shepard, o presidente Barack Obama assinou a lei que criminaliza a homofobia. No Brasil, dez anos depois do assassinato de Edson Néris, a PLC 122/06 continua parada no Senado pelo vergonhoso trabalho dos senadores evangélicos. Magno Malta mais uma vez conseguiu adiar a votação do PLC 122/06 na Comissão, convocando audiência pública para "debater" o tema da matéria, convidando para isso, um dos maiores inimigos da comunidade LGBT brasileira, o Pastor Silas Malafaia! Isso é um deboche! Um absurdo!

Parte da militância LGBT diz que jamais vivemos um período político como o atual. O Governo Federal, dizem alguns, é o governo mais pró-LGBT que já tivemos em nossa História - e isso não é de todo uma inverdade - mas eu pergunto: este governo que já conseguiu tantas vitórias no Legislativo em suas matérias de interesse; este governo que já foi acusado de passar como um "rolo compressor" na oposição no Congresso Nacional; este governo que elaborou o Programa Brasil sem Homofobia; por que ainda não conseguiu, com seus aliados, passar o PLC 122? Sim, porque eu só vejo e ouço os senadores Magno Malta e Marcelo Crivella trabalharem contra e conseguindo parar as votações! Somente os dois têm tanto poder assim? Detalhe: Crivella é o candidato do Lula ao Senado no Rio de Janeiro! Pode isso no governo mais pró-LGBT que o Brasil já conheceu?!

Na real, falta é interesse e trabalho com afinco! Faço minhas as palavras de João Silvério Trevisan e pergunto: "Quantos 'Edsons' ainda terão que morrer até tomarmos consciência de quem somos e lutarmos por nosso amor?"

* Márcio Retamero, 35 anos, é teólogo e historiador, mestre em História Moderna pela UFF/Niterói, RJ. É pastor da Comunidade Betel do Rio de Janeiro - uma Igreja Protestante Reformada e Inclusiva -, desde o ano de 2006. É, também, militante pela inclusão LGBT na Igreja Cristã e pelos Direitos Humanos. Conferencista sobre Teologia, Reforma Protestante, Inquisição, Igreja Inclusiva e Homofobia Cristã. Seu e-mail é: revretamero@betelrj.com.

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