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Maria Berenice Dias
Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM
Palestra proferida no III Congresso de Direito de Família, promovido pelo IBDFAM e pela OAB-MG, na data de 26/10/2001, em Ouro Preto-MG.
Indispensável que se reconheça que a sexualidade integra a própria condição humana. Ninguém pode realizar-se como ser humano se não tiver assegurado o respeito ao exercício da sua sexualidade, conceito que compreende tanto a liberdade sexual como a liberdade à livre orientação sexual.
Visualizados os direitos de forma desdobrada em gerações, é imperioso reconhecer que a sexualidade é um direito de primeira geração, do mesmo modo que a liberdade e a igualdade. A liberdade compreende o direito à liberdade sexual, aliado ao direito de tratamento igualitário, independente da tendência sexual. Trata-se, assim, de uma liberdade individual, um direito do indivíduo, e, como todos os direitos do primeiro grupo, é inalienável e imprescritível. É um direito natural, que acompanha o ser humano desde o seu nascimento, pois decorre de sua própria natureza.
Também não se pode deixar de considerar a livre orientação sexual como um direito de segunda geração. A discriminação e o preconceito de que são alvo os homossexuais dão origem a uma categoria social digna de proteção. A hipossuficiência não deve ser identificada somente pelo viés econômico. É pressuposto e causa de um especial tratamento dispensado pelo Direito. Tanto que devem ser reconhecidos como hipossuficientes o idoso, a criança, o deficiente, o negro, o judeu e também a mulher, porque ela, como as demais categorias, sempre foram alvo da exclusão social.
A hipossuficiência social que se dá por preconceito e discriminação gera, por reflexo, a hipossuficiência jurídica. A deficiência de normação jurídica relega à margem do Direito certas categorias sociais, cujo critério não é o econômico. Não se pode, portanto, deixar de incluir como hipossuficientes os homossexuais. Mesmo quando fruam de uma condição econômica suficiente, são social e juridicamente hipossuficientes.
Igualmente o direito à sexualidade avança para ser inserido como um direito de terceira geração, que compreende os direitos decorrentes da natureza humana, tomados não individualmente, mas genericamente, solidariamente. A realização integral da humanidade abrange todos os aspectos necessários à preservação da dignidade humana e inclui o direito do ser humano de exigir respeito ao livre exercício da sexualidade. É um direito de todos e de cada um, a ser garantido a cada indivíduo por todos os indivíduos. É um direito de solidariedade, sem o qual a condição humana não se realiza, não se integraliza.
A sexualidade é um elemento da própria natureza humana, seja individualmente, seja genericamente considerada. Sem liberdade sexual, sem direito ao livre exercício da sexualidade, sem opção sexual livre, o próprio gênero humano não se realiza, falta-lhe a liberdade, que é um direito fundamental.
É descabido continuar pensando a sexualidade com preconceitos, isto é, pré-conceitos, conceitos fixados pelo conservadorismo do passado e engessados para o presente e o futuro. As relações sociais são dinâmicas. Não compactuam com preconceitos que ainda se encontram encharcados da ideologia machista e discriminatória, própria de um tempo já totalmente ultrapassado. Necessário é pensar com conceitos jurídicos atuais, que estejam à altura dos dias de hoje. Para isso, é imprescindível pensar novos conceitos.
Daí o papel fundamental da doutrina e da própria jurisprudência. Ambas necessitam desempenhar sua função de agentes transformadores de estagnados conceitos. Basta ver o que ocorreu com o concubinato, antigo e discriminado modo de viver substituído pela moderna expressão união estável. A alteração do conceito das chamadas relações extramatrimoniais foi provocada pelos operadores do Direito. A Justiça, ao extrair conseqüências jurídicas de ditos relacionamentos, fez com que chegassem à lei maior, ao texto da Constituição, sendo reconhecidos como entidade familiar pelo § 3º de seu artigo 226.
Da mesma responsabilidade não podem agora os juízes abrir mão, com referência às uniões de pessoas do mesmo sexo. Tal qual as relações heterossexuais, as uniões homossexuais são vínculos afetivos, vínculos em que há comprometimento mútuo. A união estável configura um gênero que comporta mais de uma espécie: a união estável heterossexual e a união estável homossexual. Ambas fazem jus à mesma proteção no âmbito do Direito de Família. Enquanto não surgir legislação que trate especificamente da união estável homossexual, é de buscar-se a legislação pertinente aos vínculos familiares. Sobretudo, as regras da união estável heterossexual, por analogia, são perfeitamente aplicáveis às uniões homossexuais.
Enorme o significado da recente positivação de tais direitos que acaba de ocorrer na esfera administrativa. O INSS normatizou a concessão de benefícios aos parceiros homossexuais[1] em face da decisão do Supremo Tribunal Federal estendendo os benefícios previdenciários aos pares do mesmo sexo. Esse, com certeza, é o primeiro passo para enlaçar tais relacionamentos na esfera da juridicidade.
Indispensável é reconhecer que os vínculos homoafetivos são muito mais do que meras relações homossexuais. Em verdade, configuram uma categoria social que não pode mais ser discriminada ou marginalizada pelo preconceito, sob pena de o Direito falhar como Ciência e, o que é pior, como Justiça.
Que entre o preconceito e a justiça, fique o Estado com a justiça e, para tanto, albergue no direito legislado novos conceitos, derrotando velhos preconceitos. A doutrina já está fazendo o seu papel, ao reconhecer a união estável homoafetiva como uma espécie do gênero união estável, ao lado da união estável heterossexual.
Está na hora de o Estado – que se quer democrático e que consagra como princípio maior o respeito à dignidade da pessoa humana – deixar de sonegar juridicidade aos cidadãos que têm direito individual à liberdade, direito social à proteção positiva do Estado e, sobretudo, direito humano à felicidade.
(Artigo publicado nos Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família – Família e Cidadania, O Novo CCB e a Vacatio Legis, p. 85/88 e no site do ICF. Disponível em:
[1] Instrução Normativa nº 25/2000, de 09/6/2000.
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