parte 4 do texto:
As lésbicas na Alemanha do séc. XIX ao pré-hitlerianismo
Com característica ambivalência, os "cientistas" do séc. XIX, após rotularem de mórbido o amor mesmo-sexo, declararam-se, regra geral, compreensivos em relação aos homossexuais. Por exemplo, na sua "Psichopathia Sexualis" Krafft-Ebing sugeriu que os homossexuais não deveriam ser punidos pela lei, uma vez que eram congenitamente defectivos e a sua maneira de expressão sexual lhes era natural, não se tratando de uma escolha exótica. Apesar da ambivalência dos sexólogos, alguns grupos no movimento para os direitos homossexuais (séc. XIX), tal como o Comité Científico Humanitário, usaram os "factos científicos" dos sexólogos que versavam sobre o "fardo congénito" em campanhas contra as leis anti-homossexuais; estes grupos argumentavam, assim, que o punir os homossexuais por preferirem o seu próprio sexo era tão injusto como o punir os cegos por não poderem ver ou os aleijados por não poderem andar. Porém, outros grupos homossexuais, tal como a Comunidade dos Especiais, eram da opinião que este argumento seria em última análise contraproducente. Benedict Friedlander, fundador da Comunidade, argumentou que "podemos concerteza ter pena dos doentes, podemos ter um comportamento humano para com eles, podemos até tentar "curá-los"; contudo, em nenhuma ocasião reconhecemos direitos iguais a presumíveis inferiores físicos". Infelizmente, a maior parte dos activistas homossexuais da época demostraram cegueira à lógica de Friedlander. Infelizmente também, o grupo de Friedlander era essencialmente anti-feminista: a Comunidade queria reavivar os ideais gregos, tendo como ênfase o amor dos rapazes e a camaradagem e uma total exclusão das mulheres fora dos seus papéis reprodutivos. Por isto, as lésbicas activas no movimento dos direitos homossexuais tendiam a concordar com os sexólogos de que eram homossexuais através de uma anomalia congénita. Poucas teriam compreendido ou estado de acordo com a noção do lesbianismo político ou do lesbianismo enquanto escolha existencial.
Desta forma, tornou-se "linha do partido" para muitas(os) homossexuais durante grande parte da 1º metade do séc. XX a visão do Comité Científico Humanitário; isto enquanto se tornavam populares as teorias igualmente perniciosas de Freud sobre o efeito das influências ambientais na orientação sexual. The Well of Loneliness (O Poço Da Solidão), romance notório da inglesa Radclyffe Hall, publicado em 1928 e traduzido para 11 línguas, foi em parte responsável pela longevidade da teoria congénita. Hall, também, propagou esta teoria por motivos políticos reactivos. Através da sua heroína, Stephen Gordon, conhecedora do trabalho de Krafft-Ebing e de outros sexólogos que promulgavam a teoria congénita, Hall argumentou que, já que os invertidos "nasceram assim" não faz sentido científico olhá-los como "ofensas à natureza". E por causa do popular romance de Hall, muitas lésbicas na Europa e na América aceitaram as teorias destes "cientistas" como explicação da génese do seu "problema" enquanto continuar a crer que o lesbianismo era um problema.
Talvez tantas mulheres que amavam mulheres acolheram com agrado as teorias do fardo congénito por razões de utilidade prática política: se os homossexuais nasciam diferentes, não podiam ser culpáveis à luz da lei; uma vez que a homossexualidade era congénita, a sociedade não precisava de tomar medidas preventivas para que um homossexual não seduzisse um não-homossexual -- se a pessoa não nascia contaminada, ninguém era seduzível; e se uma pessoa nascia contaminada, essa contaminação acabaria de qualquer forma por expressar-se de acordo com a regra da natureza. Tendo em atenção as leis anti-homossexuais que foram instituídas ou que estiveram quase para ser instituídas na Alemanha do séc. XIX, tal utilidade prática política parecia a muitos homossexuais ser a via mais sensata. Ainda hoje no movimento americano de direitos gay, muitos "essencialistas" têm adoptado esta táctica.
Até 1794, um Código prussiano determinava que quer homens quer mulheres deveriam ser queimados em público como resultado de "actos contra a natureza", e foi ao abrigo dessa lei que Catarina Linck foi executada em 1721. Em 1837 foi instituída uma lei mais "liberal", segundo a qual todas as pessoas culpadas de "actos contra a natureza" eram condenadas apenas ao "encarceramento seguido de castigo perpétuo". Em 1851, o castigo para os "actos contra a natureza" foram restringidos por lei a homens apenas. A mentalidade "victoriana" chegara à Alemanha. A lei preferia ignorar a possibilidade de que as mulheres fossem capazes de expressão sexual. Em 1871, o Parágrafo 175 do Código Penal alemão reiterava que os actos homossexuais entre homens constituíam crime. Em anos posteriores do séc. XIX, verificaram-se algumas tentativas de tornar a lei novamente extensiva aos actos entre mulheres (tal como sucedeu na Áustria). Estas tentativas culminaram em 1910 com um novo projecto de Código Penal. Foi nesta altura -- pela primeira vez na história -- que grupos feministas acudiram em larga escala em defesa das lésbicas. Em toda a Alemanha realizaram-se encontros de organizações de mulheres com o propósito de discutir estratégias para lutar contra o proposto alargamento às mulheres do Parágrafo 175. A publicação Social-Democrata, Avante, noticiou que uma destas reuniões (da Liga para a Protecção das Mães), realizada em Berlim a 10/02/1911, atraiu tal participação que foi de imediato convocada outra reunião. O grupo resolveu tomar a posição que era um "sério erro" tornar extensivo às mulheres homossexuais o estatuto criminoso, deliberando também:
por este meio não seria eliminada uma igualdade, mas sim seria duplicada uma injustiça. Escancarar-se-iam as portas aos informadores e chantagistas, e as mulheres trabalhadoras solteiras que vivem com outras mulheres seriam postas sob uma pressão vergonhosa e prejudicial -- enquanto que não se protegeriam os interesses de ninguém. No mínimo, o grupo é de opinião que os peritos médicos -- em especial os investigadores sexólogos e os psiquiatras -- tal como as mulheres, devem ser consultados sobre o assunto.
Graças a estes protestos de organizações de mulheres alemãs, os legisladores derrotaram o projectado alargamento do Parágrafo 175.
Entre as décadas 1890 a 1920 inclusive, as lésbicas alemãs, mesmo aquelas que se criam homens capturadas em corpos de mulheres, eram frequentemente feministas em pelo menos algumas áreas das suas vidas. No entanto, não existiam na altura organizações especificamente ou exclusivamente lésbico-feministas. As feministas lésbicas alemãs da época faziam parte, muito frequentemente, tanto de uma organização feminista como da organização homossexual mais popular, o Comité Científico Humanitário, fundado por Magnus Hirschfeld em 1897. Segundo testemunho de Hirschfeld, a polícia por vezes chegava a impedir que as mulheres assistissem aos fóruns públicos do Comité Científico Humanitário, porque a discussão da homossexualidade era considerada imprópria na presença de mulheres. Não teria sido tolerada nessa altura uma organização pública lésbica.
Com um avanço de mais de meio século em relação a qualquer outro país, incluindo os EUA, o Comité Científico Humanitário propunha como seus objectivos: 1) trabalhar para a abolição de leis discriminatórias tais como o Parágrafo 175; 2) esclarecer o público sobre a homossexualidade; 3) esclarecer os homossexuais para que lutassem pelos seus direitos. O Comité realizava fóruns públicos acerca da homossexualidade, mandava oradores em viagens nacionais e internacionais, e providenciava as suas publicações às comissões governamentais que estudavam a revisão do Código Penal. De 1899 a 1923 o Comité publicou O Anuário dos Tipos Sexuais Intermédios , tendo-se esforçado para incluir muitos artigos por mulheres e acerca de mulheres. Regra geral, estes artigos ocupavam-se em demonstrar que também as mulheres podiam nascer do "terceiro sexo", i. e., que o lesbianismo era congénito. Hirschfeld interessava-se especificamente por envolver na causa homossexual "senhoras uranianas de intelecto elevado" e em 1902 já as via como uma "componente importante e indispensável em todos os nossos acontecimentos".
As lésbicas na Alemanha do séc. XIX ao pré-hitlerianismo
Com característica ambivalência, os "cientistas" do séc. XIX, após rotularem de mórbido o amor mesmo-sexo, declararam-se, regra geral, compreensivos em relação aos homossexuais. Por exemplo, na sua "Psichopathia Sexualis" Krafft-Ebing sugeriu que os homossexuais não deveriam ser punidos pela lei, uma vez que eram congenitamente defectivos e a sua maneira de expressão sexual lhes era natural, não se tratando de uma escolha exótica. Apesar da ambivalência dos sexólogos, alguns grupos no movimento para os direitos homossexuais (séc. XIX), tal como o Comité Científico Humanitário, usaram os "factos científicos" dos sexólogos que versavam sobre o "fardo congénito" em campanhas contra as leis anti-homossexuais; estes grupos argumentavam, assim, que o punir os homossexuais por preferirem o seu próprio sexo era tão injusto como o punir os cegos por não poderem ver ou os aleijados por não poderem andar. Porém, outros grupos homossexuais, tal como a Comunidade dos Especiais, eram da opinião que este argumento seria em última análise contraproducente. Benedict Friedlander, fundador da Comunidade, argumentou que "podemos concerteza ter pena dos doentes, podemos ter um comportamento humano para com eles, podemos até tentar "curá-los"; contudo, em nenhuma ocasião reconhecemos direitos iguais a presumíveis inferiores físicos". Infelizmente, a maior parte dos activistas homossexuais da época demostraram cegueira à lógica de Friedlander. Infelizmente também, o grupo de Friedlander era essencialmente anti-feminista: a Comunidade queria reavivar os ideais gregos, tendo como ênfase o amor dos rapazes e a camaradagem e uma total exclusão das mulheres fora dos seus papéis reprodutivos. Por isto, as lésbicas activas no movimento dos direitos homossexuais tendiam a concordar com os sexólogos de que eram homossexuais através de uma anomalia congénita. Poucas teriam compreendido ou estado de acordo com a noção do lesbianismo político ou do lesbianismo enquanto escolha existencial.
Desta forma, tornou-se "linha do partido" para muitas(os) homossexuais durante grande parte da 1º metade do séc. XX a visão do Comité Científico Humanitário; isto enquanto se tornavam populares as teorias igualmente perniciosas de Freud sobre o efeito das influências ambientais na orientação sexual. The Well of Loneliness (O Poço Da Solidão), romance notório da inglesa Radclyffe Hall, publicado em 1928 e traduzido para 11 línguas, foi em parte responsável pela longevidade da teoria congénita. Hall, também, propagou esta teoria por motivos políticos reactivos. Através da sua heroína, Stephen Gordon, conhecedora do trabalho de Krafft-Ebing e de outros sexólogos que promulgavam a teoria congénita, Hall argumentou que, já que os invertidos "nasceram assim" não faz sentido científico olhá-los como "ofensas à natureza". E por causa do popular romance de Hall, muitas lésbicas na Europa e na América aceitaram as teorias destes "cientistas" como explicação da génese do seu "problema" enquanto continuar a crer que o lesbianismo era um problema.
Talvez tantas mulheres que amavam mulheres acolheram com agrado as teorias do fardo congénito por razões de utilidade prática política: se os homossexuais nasciam diferentes, não podiam ser culpáveis à luz da lei; uma vez que a homossexualidade era congénita, a sociedade não precisava de tomar medidas preventivas para que um homossexual não seduzisse um não-homossexual -- se a pessoa não nascia contaminada, ninguém era seduzível; e se uma pessoa nascia contaminada, essa contaminação acabaria de qualquer forma por expressar-se de acordo com a regra da natureza. Tendo em atenção as leis anti-homossexuais que foram instituídas ou que estiveram quase para ser instituídas na Alemanha do séc. XIX, tal utilidade prática política parecia a muitos homossexuais ser a via mais sensata. Ainda hoje no movimento americano de direitos gay, muitos "essencialistas" têm adoptado esta táctica.
Até 1794, um Código prussiano determinava que quer homens quer mulheres deveriam ser queimados em público como resultado de "actos contra a natureza", e foi ao abrigo dessa lei que Catarina Linck foi executada em 1721. Em 1837 foi instituída uma lei mais "liberal", segundo a qual todas as pessoas culpadas de "actos contra a natureza" eram condenadas apenas ao "encarceramento seguido de castigo perpétuo". Em 1851, o castigo para os "actos contra a natureza" foram restringidos por lei a homens apenas. A mentalidade "victoriana" chegara à Alemanha. A lei preferia ignorar a possibilidade de que as mulheres fossem capazes de expressão sexual. Em 1871, o Parágrafo 175 do Código Penal alemão reiterava que os actos homossexuais entre homens constituíam crime. Em anos posteriores do séc. XIX, verificaram-se algumas tentativas de tornar a lei novamente extensiva aos actos entre mulheres (tal como sucedeu na Áustria). Estas tentativas culminaram em 1910 com um novo projecto de Código Penal. Foi nesta altura -- pela primeira vez na história -- que grupos feministas acudiram em larga escala em defesa das lésbicas. Em toda a Alemanha realizaram-se encontros de organizações de mulheres com o propósito de discutir estratégias para lutar contra o proposto alargamento às mulheres do Parágrafo 175. A publicação Social-Democrata, Avante, noticiou que uma destas reuniões (da Liga para a Protecção das Mães), realizada em Berlim a 10/02/1911, atraiu tal participação que foi de imediato convocada outra reunião. O grupo resolveu tomar a posição que era um "sério erro" tornar extensivo às mulheres homossexuais o estatuto criminoso, deliberando também:
por este meio não seria eliminada uma igualdade, mas sim seria duplicada uma injustiça. Escancarar-se-iam as portas aos informadores e chantagistas, e as mulheres trabalhadoras solteiras que vivem com outras mulheres seriam postas sob uma pressão vergonhosa e prejudicial -- enquanto que não se protegeriam os interesses de ninguém. No mínimo, o grupo é de opinião que os peritos médicos -- em especial os investigadores sexólogos e os psiquiatras -- tal como as mulheres, devem ser consultados sobre o assunto.
Graças a estes protestos de organizações de mulheres alemãs, os legisladores derrotaram o projectado alargamento do Parágrafo 175.
Entre as décadas 1890 a 1920 inclusive, as lésbicas alemãs, mesmo aquelas que se criam homens capturadas em corpos de mulheres, eram frequentemente feministas em pelo menos algumas áreas das suas vidas. No entanto, não existiam na altura organizações especificamente ou exclusivamente lésbico-feministas. As feministas lésbicas alemãs da época faziam parte, muito frequentemente, tanto de uma organização feminista como da organização homossexual mais popular, o Comité Científico Humanitário, fundado por Magnus Hirschfeld em 1897. Segundo testemunho de Hirschfeld, a polícia por vezes chegava a impedir que as mulheres assistissem aos fóruns públicos do Comité Científico Humanitário, porque a discussão da homossexualidade era considerada imprópria na presença de mulheres. Não teria sido tolerada nessa altura uma organização pública lésbica.
Com um avanço de mais de meio século em relação a qualquer outro país, incluindo os EUA, o Comité Científico Humanitário propunha como seus objectivos: 1) trabalhar para a abolição de leis discriminatórias tais como o Parágrafo 175; 2) esclarecer o público sobre a homossexualidade; 3) esclarecer os homossexuais para que lutassem pelos seus direitos. O Comité realizava fóruns públicos acerca da homossexualidade, mandava oradores em viagens nacionais e internacionais, e providenciava as suas publicações às comissões governamentais que estudavam a revisão do Código Penal. De 1899 a 1923 o Comité publicou O Anuário dos Tipos Sexuais Intermédios , tendo-se esforçado para incluir muitos artigos por mulheres e acerca de mulheres. Regra geral, estes artigos ocupavam-se em demonstrar que também as mulheres podiam nascer do "terceiro sexo", i. e., que o lesbianismo era congénito. Hirschfeld interessava-se especificamente por envolver na causa homossexual "senhoras uranianas de intelecto elevado" e em 1902 já as via como uma "componente importante e indispensável em todos os nossos acontecimentos".
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