Desde o nosso primeiro encontro, Luca (nome fictício) insiste na tese de que há algo de muito errado com ele. Aos trinta e poucos anos se encontra desempregado, com uma vida social empobrecida e sem nenhum amor em vista. Sua única distração é uma atividade sexual compulsiva e de alto risco, vivida com muita culpa e permeada por sentimentos profundos de auto-desprezo.
Terceiro e último filho de uma família de classe média, Luca cresceu acreditando não ser amado ou admirado por sua mãe, cuja vida se resumia, segundo ele, a lidar com as enormes dificuldades de um casamento infeliz e um marido alcoólatra. Sua relação com o pai era não apenas distante, mas também de grande animosidade. Relata ter se sentido abusado emocionalmente por todo o período da infância e adolescência, tanto pelos pais que o criticavam constantemente, quanto pelos colegas da escola e os amigos do bairro. Suas lembranças mais vívidas são carregadas de sentimentos de inadequação e de humilhação.
Uma vez formado, Luca decidiu tentar a vida fora dos domínios familiares. Já na cidade grande, assumiu-se como homossexual e passou a freqüentar o chamado meio gay, com uma clara preferência por ambientes mais “barra-pesada” e se engajando em atividades sexuais que o colocavam em situações com algum risco de ser flagrado (lugares públicos) ou mesmo de sofrer algum dano físico ou psicológico. Como parte dessas práticas que foram com o tempo se tornando mais freqüentes e mais perigosas, Luca passou também a consumir drogas e a se envolver socialmente com grupos marginais. Nunca namorou firme ou sentiu-se verdadeiramente amado por alguém.
Quando chegou para a terapia, Luca já se encontrava numa espiral descendente abrupta. Em vias de perder o emprego, o que de fato aconteceu alguns meses mais tarde, com um diagnóstico de HIV, distante da família, sem amigos e sem controle sobre sua vida sexual compulsiva e uso de drogas, ele não via nenhuma saída. Sem uma consciência clara a respeito de seu papel na confecção da trama de sua vida, e completamente identificado com o papel de vitima, só conseguia culpar seus pais e a sociedade homofóbica pela situação na qual chegara. O sexo e as drogas eram, segundo ele, sua única válvula de escape, incapazes, porém de eliminar seus sentimentos negativos e seu estado psicológico depressivo. Gostaria de mudar de vida, desenvolver uma nova carreira profissional, ter amigos e um namorado, mas se sentia absolutamente incapaz de ativar em si próprio a energia necessária a essa empreitada.
Luca apresenta um padrão psicológico fortemente ancorado no ressentimento e na mágoa. Tendo como origem os sentimentos de rejeição e de exclusão, esse padrão consome grande parte da energia psíquica que deveria estar disponível para que ele pudesse realizar as mudanças que tanto deseja. Como isso não é possível, permanece aprisionado a um estado de impotência existencial, responsabilizando os outros por sua infelicidade crônica. Suas práticas sexuais compulsivas e perigosas, ao invés de fornecer o alívio esperado, apenas atualizam as experiências de abuso e humilhação do passado.
Embora esse padrão possa ser encontrado em pacientes de ambos os sexos e com diferentes orientações sexuais, ele tende a ser recorrente na clínica homossexual. Pacientes gays freqüentemente relatam a experiência de terem sido rejeitados ou sofrido abusos de ordem física, emocional e até mesmo sexual, tanto na infância quanto na adolescência. Para alguns desses indivíduos, essas vivências de rejeição, de exclusão e de abuso podem danificar de tal forma o tecido psíquico em formação a ponto de torná-los totalmente incapazes para um relacionamento amoroso saudável e simétrico. Passam então suas vidas ressentidos, repetindo inconscientemente situações de abuso e alimentando secretamente desejos de vingança. A fantasia de vingança é para eles a única possibilidade de redenção imaginada, já que não conseguem se libertar do passado, se transformar e se re-inventar como adultos responsáveis por suas escolhas.
Para Luca, assim como para muitos outros tragicamente acorrentados a esse padrão, a saída psicológica só será possível por meio da mobilização da energia psíquica criativa e potencialmente transformadora que se encontra estagnada e submersa no mar de ressentimentos no qual ele flutua a deriva. Se tiver a coragem e a determinação necessárias para mergulhar nessas águas profundas e enfrentar seus monstros mais temidos, ele poderá com toda certeza descobrir os tesouros e ativar os recursos de que tanto necessita para reparar a ferida e poder finalmente olhar para frente.
Klecius Borges é Psicólogo (CRP 06/6283) e atua em terapia afirmativa
terapiafirmativa@uol.com.br
domingo, 29 de março de 2009
Mar de ressentimentos
25.03.09
Por Klecius Borges
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