quinta-feira, 19 de março de 2009

A imagem lésbica, anos 1890-1920

Fonte:

http://www.geocities.com/girl_ilga/textos/lesbicasalemanha.htm


5° parte do texto:

As lésbicas na Alemanha do séc. XIX ao pré-hitlerianismo.



A mais fluente afirmação literária sobre a vida lésbica, saída da Alemanha desta época, foi o extraordinário Serão estas mulheres? de Aimée Duc (1903). O livro de Duc, embora não particularmente exímio enquanto romance, é absolutamente inigualável enquanto afirmação enfaticamente positiva lésbico-feminista -- com um final feliz. O resto da ficção lésbica deste período foi escrita em grande medida por homens e frequentemente apresentava as lésbicas como doentes ou confusas ou sinistras ou todas essas 3 categorias. Os poucos romances escritos por mulheres frequentemente apresentavam experiências adolescentes, por vezes em jeito de prevenção ( p. ex. A Nova Eva de Maria Janitschek, 1906): esta advertia que se a expressão heterossexual dos jovens fosse suprimida, viriam à superfície sentimentos homossexuais. A maior parte das vezes, estes romances retratavam paixões de adolescência entre raparigas ou a paixão inocente de uma jovem por uma mulher mais velha. Estas não ameaçavam particularmente o tecido da sociedade, partindo-se do princípio que a rapariga ultrapassaria esta "fase" (ex. em 1897 De uma boa família de Gabriella Reuter e em 1903 A Jovem Don Juan de Maria Eichhorn). Algumas autoras foram ao ponto de sugerir, tal como Reuter numa posterior obra autobiográfica (Da infância à maturidade , 1921), que uma paixão adolescente para com outra mulher poderá ser uma das experiências emocionais mais profundas e mais sérias da vida de uma mulher.

Era frequente os romances sobre mulheres adultas se oporem especificamente ao contacto sexual entre mulheres e sugerirem que estas relações mesmo-sexo deveriam estar livres de semelhante expressão baixa e ignóbil (ex. Da nova mulher e do seu amor de Elizabeth Dauthendey, 1900). E não foi senão em 1919, com O Escorpião , 1º volume de uma trilogia de Anna Weirauch, que o erotismo lésbico apareceu como mais do que um lamiré num romance escrito por uma mulher. A sensibilidade das mulheres à possibilidade da censura poderá ser explicação da reticência de muitas escritoras deste período. Mais difícil de explicar é a existência de um livro tão revolucionário e, em última análise, celebratório como Serão estas mulheres?, que nem mostrava a heroína a ultrapassar a sua ligação lésbica, nem sugeria que o amor entre as mulheres deveria ser assexual, nem escondido sob as vestimentas da ciência.

Muitas destas escritoras aceitavam a noção da lésbica como sendo membro do terceiro sexo, e, deste modo, totalmente diferente da mulher vulgar. De acordo com Anna Rueling:



A mulher homossexual possui as qualidades, inclinações e capacidades que consideramos masculinas. Em particular, a mulher homossexual diferencia-se da norma feminina na sua vida emocional. Enquanto que na mulher heterossexual é a emoção que quase sempre predomina e constitui traço decisivo, a mulher uraniana rege-se pela razão pura.



Uma vez que eram negados os factores sociais ou ambientais como explicação para a racionalidade, energia, agressão (ou falta delas), e bem assim como explicação para a homossexualidade, Rueling e outras argumentavam que as mulheres homossexuais "pensavam como homens" porque tinham nascido com mentes de homens.

Muitas destas mulheres também aceitavam sem questionar a necessidade de uma dicotomia de papéis masculino/feminino nas relações lésbicas -- por vezes por lhes parecer natural, por vezes por estarem influenciadas pela rígida divisão sexual do séc. XIX, o que as levava a crer que 2 mulheres ligadas uma à outra teriam de assumir um papel masculino e outro feminino, a fim de perfazerem um todo entre as duas.

Assim, a "contra-sexual" que escreveu "A verdade a meu respeito" conclui a descrição da sua felicidade doméstica da seguinte forma: "A minha linda e querida esposa move-se atarefadamente na nossa casinha como uma verdadeira dona de casa alemã, e eu trabalho e tomo conta de nós as duas como um marido activo e vital".

Estas escritoras sofriam frequentemente de Vitorianismo, que lhes ensinava que, enquanto que o amor era nobre e o bem mais elevado, o sexo era o mal. Caso tivessem sido heterossexuais, teriam tido sem dúvida problemas com o erotismo semelhantes àqueles que tinham enquanto homossexuais. Estas mulheres que amavam mulheres ainda se encontravam suficientemente próximas à instituição amorfa da amizade romântica (que até há pouco tempo fora socialmente aceite) para quererem manter-se nela ou esconder-se por detrás. A solução encontrada pela Sra. M.F. para os "pecados da carne" não foi desistir do seu amor pelas mulheres, mas sim substituir a sensualidade pela "nobreza e pureza espiritual", foi sublimar a sensualidade em "energia criativa". A solução altamente equívoca de Elisabeth Dauthendey no seu Sobre a nova mulher e o seu amor vê a heroina rejeitar os avanços sexuais "impuros" de sáficas, em vez disso encontrando uma felicidade sensual mas claramente não-genital com uma mulher mais jovem.

As duas amantes são descritas nos seguintes termos: "a resplandecente jovem mulher na plenitude da sua beleza, e a mulher madura na plenitude da sua experiência e da sua esperança imortal para a vida vindoura. Estas duas, com grande fé uma na outra, com conhecimento puro uma da outra -- unidas nessa devoção que apenas as mulheres sabem atingir no amor". Dauthendey torna claro que as duas mulheres dependem agora uma da outra, apenas porque os homens não merecem o amor puro das mulheres, e que quando os homens, eles próprios, se tornarem nobres, jovens como a jovem heroína consentirão em tornar-se esposas e mães. A autora não diz o que fará com a sua vida e o seu intenso amor a mulher mais velha, caso a mulher jovem encontre o macho excepcional. No entanto, cinco anos mais tarde, Dauthendey compensa este equivocar num panfleto intitulado "A questão Uraniana e as mulheres", no qual insiste, mais do que 60 anos antes das mulheres de agora, que as feministas têm a obrigação de apoiar os Uranianos.

Enquanto que as lésbicas frequentemente caíam na armadilha dos mitos disfarçados de ciência, sabiam também que eram acima de tudo mulheres, que embora escolhessem não relacionar-se com os homens, eram vítimas do sexismo. Assim, aquelas que pensavam as questões eram militantemente feministas, mesmo a auto-identificada "contra-sexual" masculina ("A verdade a meu respeito"), que sugerem que a mulher -- não apenas aquelas que são "homens dentro de corpos de mulher" mas sim todas as mulheres -- deveria ter relutância em casar, porque o casamento significava "envergar o jugo" e permitir a alguém "afirmar o seu 'ele será o teu senhor'"; e que se dá conta com ira que, embora tivesse tido as notas mais altas na escola primária, encontrava dificuldades em prosseguir a educação por "ser rapariga".

Estas mulheres foram também das primeiras a reconhecer que muita mulher neurótica poderia curar-se, como é sugerido em Serão estas mulheres? , "se a deixassem ser independente, simplesmente como ser humano com a sua própria profissão". Reconheciam também que a popular maleita feminina, a histeria, se devia à sensação de infelicidade por parte das mulheres e que se a essas mulheres "doentes" fosse permitido um trabalho construtivo, quase todas se transformariam em pessoas "capazes e úteis".

Estas mulheres criticavam o pressuposto da sua sociedade segundo o qual era obrigação de todas as jovens casar, não precisando pois de qualquer formação profissional. Melhor ainda, as lésbicas alemães apresentavam frequentemente uma imagem ideal àquelas cuja aspiração era serem fortes mulheres modernas. Este ideal encontra-se sucintamente expresso na personagem do romance de Aimée Duc, nos seguintes termos: "uma mulher séria e com experiência da vida, auto-suficiente apesar dos seus meros 28 anos, de um modo que apenas as mulheres intelectualmente activas podem ser".

De acordo com Anna Rueling, no início do século o movimento das mulheres na Alemanha parecia estar a "avançar sem impedimentos". As mulheres homossexuais eram de opinião que tinham passado suficiente tempo caladas quer nas chefias, quer nas bases do movimento, que era chegada a altura de as feministas "confessarem aberta e honestamente: sim, há muitas Uranianas entre nós, e devemos-lhes uma grande dívida pela sua energia e trabalho, que nos trouxe grandes êxitos", que era chegada a altura de o movimento das mulheres se ocupar de alguns problemas especificamente das lésbicas, uma vez que as lésbicas tinham feito um longo e árduo trabalho em benefício das mulheres heterossexuais.

Mas teria sido impossível às "feministas-lésbicas" fazerem tais exigências se não tivessem tido como apoio a força do movimento homossexual que serviu para consciencializar as lésbicas e que -- apesar das perniciosas teorias "congénitas", aceites por algumas facções do movimento homossexual -- serviu para dar às lésbicas de uma época tão remota como 1900 uma primeira aproximação de orgulho gay. Munida deste orgulho, a autora de "A verdade a meu respeito" exorta outras lésbicas: "Tomem esta coragem, minhas irmãs, e mostrem ao mundo que têm tanto direito a existir e amar como o mundo "normal", desafiem este mundo e eles tolerar-vos-ão, reconhecer-vos-ão, terão mesmo inveja de vós".

Esta mensagem foi suprimida com o crescer do fascismo na Alemanha dos anos 30, quando foram submetidos a rusgas policiais os locais de encontro de lésbicas e até apartamentos particulares, e algumas lésbicas foram mandadas para campos de concentração, tal como o campo de Buetzow em Mecklenburg.

Mas, antes de tal acontecer, tinha-se desenvolvido uma sub-cultura lésbica que, já nos anos 20, não tinha igual em parte alguma do mundo, excepto talvez em Paris. Em Berlim existiam cerca de 60 locais onde podiam ir as lésbicas conversar, dançar, brincar, e conhecer outras mulheres -- locais quer para lésbicas de classe média, quer para lésbicas de classe operária. Havia até um jornal exclusivamente lésbico, patrocinado pela Federação para os Direitos Humanos (uma organização homossexual que nos anos 20 tinha 48 000 sócios). Este jornal anunciava em termos claros os locais nocturnos para lésbicas, as quais podiam também colocar anúncios pessoais. Tal liberdade e abertura não voltaram a enraizar-se em mais nenhuma parte do mundo durante cerca de meio século.



(tradução de MJS in Lilás nº13, 1995)
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