quinta-feira, 7 de agosto de 2008

A Trajetória da Família Ocidental e a Maternidade Lésbica

Disponível em:

http://albertocarneiro.wordpress.com/2007/07/03/a-trajetoria-da-familia-ocidental-e-a-maternidade-lesbica/

As lésbicas que decidem articular sua sexualidade com a maternidade acabam por ficar socialmente mais vulneráveis, pois a sociedade considera as duas práticas como incompatíveis e esta dinâmica pode ser mais bem explicada se fizermos uma breve incursão na trajetória da família ocidental ao longo da historia.

A família nuclear, tal qual a concebemos hoje em dia, se constituiu ao longo dos séculos XVI ao XVIII e teve como uma das bases de sustentação a diferença sexual, com a mulher absolutamente submissa.

A partir do século XIX, temos o surgimento do amor romântico, que passa a reger a ordem social da época e a libertar o vínculo conjugal de laços de parentescos mais amplos (Giddens, 1994).

Mais tarde, a sexualidade começava a não estar ligada necessariamente à reprodução, principalmente depois da invenção da pílula anticoncepcional. A concepção já podia ser artificialmente produzida, mais que apenas artificialmente inibida, e a sexualidade ficava afinal plenamente autônoma, o que obrigou a sociedade a resignificar o papel da mulher, tanto no âmbito privado quanto publico, com conseqüências na formação e constituição da família.

Visto isso, podemos dizer que existem três fases na historia da família ocidental, todas diretamente ligadas “a trajetória da mulher e suas conquistas : a primeira, que vai até o final do século XVIII, chamada de família tradicional, que tinha como principal função a manutenção e transmissão do patrimônio e a prática comum de um ofício, passado através das gerações, não tendo função afetiva (Roudinesco,2002). Baseada na teoria monarquista do Direito Divino, o homem era autoridade máxima no lar, pois a família deveria agir em obediência à palavra de Deus, que ordenara o mundo de tal forma imutável e dogmática, que cabia às mulheres apenas obedecer e servir. (Ariès, 1981).

A vida sexual e afetiva feminina era desconsiderada, mesmo porque os casamentos, para fins de manutenção e transmissão do dote, aconteciam em idades muito precoces e a mulher era apenas um instrumento da família para manutenção de riqueza e poder.

Assim como na religião, na família perpetuava a soberania do homem de forma tão inquestionável que, se a mulher se comportasse de forma diferente de como era esperado, ou seja, algo além do servir e procriar, poderia ser condenada nos tribunais da inquisição como bruxa ou feiticeira, e, para tanto, o poder patriarcal mantinha sob forte vigilância o comportamento das filhas e esposas. O prazer sexual ou qualquer outro desejo, como estudar ou trabalhar, não eram sequer considerados.

Ainda que o modelo de família tradicional tenha entrado em decadência no final do século XVIII, a soberania paterna e a submissão feminina não perderam seu lugar até o fim do século XIX, tendo sobrevivido inclusive às profundas mudanças sociais que a revoluções Francesa e Industrial impuseram à Europa.

Um segundo período da evolução da família data do final do século XVIII até metade do século XX, onde a família entra em sua fase de “amor romântico”, ou seja, as relações passam a ser pautadas nos sentimentos e na sexualidade, sendo legitimadas pelo matrimônio, iniciando um lento processo de dessacralização da instituição familiar e valorização da mulher. Com isso, a educação dos filhos passa a ser também obrigação do governo e o poder patriarcal absoluto inicia sua decadência.

O Estado entra nos lares e começa a substituir, aos poucos, o poder do homem em várias de suas atribuições a fim de obter maior controle social Conseqüentemente, este deixou de ser absoluto e a dependência da mulher ao marido é questionada, uma vez que o homem deveria ser justo, valorizando a esposa, a fim de responder ao lema de Igualdade e Fraternidade do novo Estado Burguês.

São claros, portanto, os efeitos da Revolução Francesa, destituindo a Monarquia e abolindo o Direito Divino, com suas repercussões na estrutura da família nuclear e decadência do poder patriarcal. Soma-se a isso, o advento da Revolução Industrial, que gerou a necessidade de uma maior mão-de-obra masculina nas fábricas, contribuindo para o processo de fortalecimento do papel da mulher dentro e fora de casa , criando uma divisão do trabalho entre o Governo e os homens, na esfera publica, e entre homens e mulheres, na esfera privada.

Nesta nova fase, o casamento é sustentado pela afetividade e durará apenas enquanto esta existir, possibilitando a entrada em cena do divorcio, adotado oficialmente na França a partir de 1884, fortalecendo o papel da mulher no lar.

Outra mudança que esta nova ordem familiar traz diz respeito aos direitos dos filhos a ter uma família, fossem legítimos ou não. Assim, cria-se o instrumento da maternidade adotiva, onde filhos adotivos eram criados por famílias substitutas lideradas por mulheres descasadas ou mesmo solteiras , e passavam a gozar dos mesmos direitos da prole natural.

Sob influência da psicanálise e da própria modernidade, surge, na segunda metade do século XX, a família contemporânea, ou pós-moderna. Os divórcios aumentam, a autoridade paterna é questionada em todos os seus aspectos, a sexualidade da mulher é mais respeitada e o casamento passa a ter sentido somente na medida em que há uma busca pelo prazer e pela completude em ambos os sexos, se desfazendo quando estas buscas não mais existirem. Isto implica, como já dissemos, na desvinculação do prazer sexual em relação à procriação, dando mais poder á mulher e abrindo as postas para arranjos familiares os mais diversos, entre eles, o homossexual que, com a instituição da adoção e das técnicas de inseminação artificial, abre caminho para o direito à maternidade homossexual.

Hoje em dia, o casamento se transformou, sobretudo, no espaço simbólico da sexualidade socialmente reconhecida. Esta é a razão pala qual os novos arranjos familiares com orientação homossexual e a própria homoparentalidade é tão criticada pelos setores mais conservadores da sociedade já que, na pós-modernidade, não é a consumação do ato sexual, mas, antes, o consentimento entre as partes que constituem a substância desta instituição.

Recapitulando, vimos que, com a pílula anticoncepcional e a saída da mulher para o mercado de trabalho, esta alcança maior independência econômica, passando a não aceitar ser dependente do marido. Por outro lado, seu tempo para os filhos encurtou e sua relação com eles se modificou: muitas funções são hoje delegadas à escola e às babás e ela se preocupou em melhorar a qualidade do tempo que passa com os filhos. Uma conseqüência disto foi o aumento de casamentos com famílias aonde os cônjuges vêm de outros casamentos, já com filhos e a desconstruçao do modelo ideal de família nuclear.

Tudo isso causou grande impacto nas relações heterossexuais, que se mantinham como centralizadoras da normatização, além de portadoras da garantia de maior estabilidade, em função do casamento tradicionalmente instituído e legitimado pela legislação e pela sociedade como um todo. Porém, com a desconstrução da justificativa biológica para a heterossexualidade como sendo a escolha normal, o que costumava ser chamado de perversões passa a ser diferentes formas de como a sexualidade de cada um possa ser legitimamente revelada e a auto-identidade, da mesma forma, definida (Giddens, 1994). Assim, surge, entre outras, a conjugalidade homossexual. Dizemos “surge”, pois foi somente após o deslocamento das relações heterossexuais como única possibilidade legitimada pela sociedade de formação de uma família ou mesmo de um casal, é que as relações homossexuais começam a sair da marginalidade. Soma-se a isso a maior visibilidade da mulher homossexual e a crescente discussão a respeito da homoparentalidade lésbica, principalmente após a morte de Cássia Ellere das conquistas de lésbicas em obter a quarda definitiva de seus filhos, que acabaram por enfraquecer a idéia de normalidade sexual.

Dessa forma, novas práticas sociais surgem à medida que ocorre a associação entre maternidade e homossexualidade, como a maior conquista do espaço social pelas mulheres acentuando ainda mais a crise masculina que vimos ao longo deste trabalho, uma vez que, ao ocupar esferas sociais, antes exclusivamente masculinas, expõe uma ruptura no modelo hegemônico do poder do homem, levando-o a uma busca incessante pela redefinição do seu papel. Dessa forma, para a mulher assumir a homossexualidade nesse universo machista e conservador em que vivemos e, ao mesmo tempo optar pela maternidade, é necessário percorrer um árduo caminho, onde uma das saídas parece ser a luta pela busca da cidadania plena e consolidação dos direitos da mulher, na qual a orientação sexual não represente motivo de exclusão dentro do processo da dinâmica social. Uma das formas de se caminhar nesta direção parece ser a de compreender que a sexualidade em si é um fenômeno socialmente construído e, assim como já superamos a época em que era exigido que a mulher cultivasse sua pureza para obter algum ganho social, é importante que percebamos a sexualidade como menos ligada à questão de gênero, com a conseqüente maior liberdade econômica e social da mulher, desvinculando-se da obrigatoriedade de vincular-se a um homem, independente de sua própria orientação sexual, para exercer a maternidade e questionando, assim, uma sociedade heterocentrista, que coloca esta orientação como normativa.

Concluindo, uma das grandes diferenças que a maternidade lésbica traz é o fato de ser comum não haver laços sangüíneos ou mesmo legais, o que parece facilitar uma maior cumplicidade no compartilhamento de responsabilidades comuns , além de não haver papéis de gênero definidos, tais como a mãe que cuida do lar e o pai que sustenta a casa e dá as ordens, sendo ambas as companheiras responsáveis pelo bem-estar físico-emocional dos filhos.

A escolha em relação à forma pela qual se quer ter um filho e o momento certo para isso também é característica deste arranjo familiar.

A maternidade lesbica, aos poucos, começa a ganhar legitimidade social , uma vez que as relações e as instituições sociais (como a maternidade propriamente dita e a família) estão sempre em processo de mudança, e esta não acontece de uma hora para outra ou pela imposição absoluta do novo. Dá-se, antes, pela recodificação de antigos paradigmas e interditos e pela reestruturação dos papéis da mulher na sociedade como um todo.

O que parece estar acontecendo com a maternidade é semelhante ao que vem acontecendo com o gênero, quando, por exemplo, se torna mais aceitável, e mesmo desejável, que homens cumpram tarefas domésticas ou cuidem das crianças em uma família de estrutura heterossexual e que mulheres trabalhem e ate mesmo sustentem seus maridos.

A homoparentalidade, de forma similar, surge como um instituinte de um novo arranjo familiar pós-modernoe se diferencia bastante do meodelo tradiconal de família visto no início deste trabalho. Podemos ainda dizer que a conjugalidade lesbica se caracteriza por ser mais livres e menos comprometida em relação às cobranças sociais, pois muitas não são reconhecidas publicamente, mas, nem por isso, menos estável.

Uma conseqüência disso seria a baixa coercitividade sobre a manutenção do vínculo conjugal por conveniência ou pressão social, uma vez que as configurações familiares baseadas na conjugalidade homoerótica parecem concentrar certas tendências presentes em contextos marcados por processos de modernização (Tarnovski, 2002).

Outra característica da conjugalidade homossexual feminina é a sólida noção de companheirismo, e um considerável nível de igualdade construído na relação, baseado principalmente na amizade e cumplicidade das parceiras.

Neste tipo de relação, a monogamia ou mesmo a sobrevivência do relacionamento está sujeita ao desejo das duas mulheres, e durará até o ponto em que elas a considerem desejável, aproximando-se bastante do que Giddens (1994) chamou de amor confluente, onde o que se procura não é um amor especial, mas um relacionamento que se tenha igualdade entre as parceiras e reconhecimento de suas diferenças e aceitação da diversidade, mesmo dentro da relação, a partir da exploração da intimidade. Por isso a monogamia não é valor essencial à sobrevivência do relacionamento, não excluindo a possibilidade dela estar presente, embora seja bem mais comum do que nos casais homossexuais masculinos. A conjugalidade lésbica possibilita “a expressão social da intimidade transformada, isto é, novos posicionamentos subjetivos que são compartilhados no plano dos relacionamentos amorosos” (Passarelli, 1998, pág 70).




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