domingo, 6 de julho de 2008

Homoafetividade e o direito à diferença ( II )





4. Homoafetividade

A sociedade que se proclama defensora da igualdade é a mesma que ainda mantém uma posição discriminatória nas questões da sexualidade. Nítida é a rejeição à livre orientação sexual. A homossexualidade existe e sempre existiu, mas é marcada pelo estigma do preconceito. Por se afastar dos padrões de comportamento convencional, é renegada à marginalidade. Por ser fato diferente dos estereótipos, o que não se encaixa nos padrões, é tido como imoral ou amoral, sem buscar-se a identificação de suas origens orgânicas, sociais ou comportamentais.[14]

Tenta-se excluir a homossexualidade do mundo do Direito, mas imperativa sua inclusão no rol dos direitos humanos fundamentais, como expressão de um direito subjetivo que se insere em todas as suas categorias, pois ao mesmo tempo é direito individual, social e difuso.

O direito à homoafetividade, além de estar amparado pelo princípio fundamental da isonomia, cujo corolário é a proibição de discriminações injustas, também se alberga sob o teto da liberdade de expressão. Como garantia do exercício da liberdade individual, igualmente cabe ser incluído entre os direitos de personalidade, precipuamente no que diz com a identidade pessoal e a integridade física e psíquica. Acresce ainda lembrar que a segurança da inviolabilidade da intimidade e da vida privada é a base jurídica para a construção do direito à orientação sexual, como direito personalíssimo, atributo inerente e inegável da pessoa humana.[15]

Qualquer discriminação baseada na orientação sexual configura claro desrespeito à dignidade humana, a infringir o princípio maior consagrado pela Constituição Federal. Infundados preconceitos não podem legitimar restrições a direitos, o que fortalece estigmas sociais que acabam por causar sentimento de rejeição e sofrimentos. Ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo a um ser humano, em função da orientação sexual, significa dispensar tratamento indigno a um ser humano. Não se pode, simplesmente, ignorar a condição pessoal do indivíduo (na qual, sem sombra de dúvida, inclui-se a orientação sexual), como se tal aspecto não tivesse relação com a dignidade humana.[16]

O núcleo do atual sistema jurídico é o respeito à dignidade humana, que se sustenta nos princípios da liberdade e da igualdade. A proibição da discriminação sexual, eleita como cânone fundamental, alcança a vedação à discriminação da homossexualidade, pois diz com a conduta afetiva e o direito à orientação sexual. A identificação do sexo da pessoa escolhida em relação a quem escolhe não pode ser alvo de tratamento diferenciado. Se todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, aí está incluída a orientação sexual. Uma dimensão dúplice da dignidade manifesta-se enquanto simultaneamente expressão da autonomia da pessoa humana, vinculada à idéia de autodeterminação no que diz com as decisões essenciais a respeito da própria existência, bem como da necessidade de sua proteção (assistência) por parte da comunidade e do Estado, especialmente quando fragilizada ou até mesmo quando ausente a capacidade de autodeterminação.[17]

O exercício da sexualidade, a prática da conjunção carnal ou a identidade sexual não distinguem os vínculos afetivos. A identidade ou diversidade do sexo do par gera espécies diversas de relacionamento. Assim, melhor é falar em relações homoafetivas ou heteroafetivas do que em relações homossexuais ou heterossexuais.


5. Uniões homoafetivas

Impondo a Constituição Federal respeito à dignidade humana, são alvo de proteção os relacionamentos afetivos independente da identificação do sexo do par: se formados por homens e mulheres ou só por mulheres ou só por homens. Ainda que, quase intuitivamente, se conceitue a família como uma relação interpessoal entre um homem e uma mulher tendo por base o afeto, necessário reconhecer que há relacionamentos que, mesmo sem a diversidade de sexos, são cunhados também por um elo de afetividade.

Preconceitos de ordem moral não podem levar à omissão do Estado. Nem a ausência de leis nem o conservadorismo do Judiciário servem de justificativa para negar direitos aos vínculos afetivos que não têm a diferença de sexo como pressuposto. É absolutamente discriminatório afastar a possibilidade de reconhecimento das uniões estáveis homossexuais. São relacionamentos que surgem de um vínculo afetivo, gerando o enlaçamento de vidas com desdobramentos de caráter pessoal e patrimonial, estando a reclamar regramento jurídico.

Reconhecer como juridicamente impossíveis ações que tenham por fundamento uniões homossexuais é relegar situações existentes à invisibilidade. Enseja a consagração de injustiças, uma vez que chancela o enriquecimento sem causa. Nada justifica, por exemplo, deferir uma herança a parentes distantes em prejuízo de quem muitas vezes dedicou uma vida a outrem e participou da formação do acervo patrimonial. Descabe ao juiz julgar as opções de vida das partes. Deve-se cingir à apreciação das questões que lhe são postas, centrando-se exclusivamente na apuração dos fatos para encontrar uma solução que não se afaste de um resultado justo. As uniões homoafetivas são uma realidade que se impõe e não podem ser negadas, estando a reclamar tutela jurídica, cabendo ao Judiciário solver os conflitos trazidos. Incabível que as convicções subjetivas impeçam seu enfrentamento e vedem a atribuição de efeitos, relegando à marginalidade determinadas relações sociais, pois a mais cruel conseqüência do agir omissivo é a perpetração de grandes injustiças.[18]

Descabido estabelecer a distinção de sexos como pressuposto para o reconhecimento da união estável. Dita desequiparação, arbitrária e aleatória, é exigência nitidamente discriminatória. O próprio legislador constituinte nominou de entidade familiar merecedora da proteção do Estado também a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. Diante dessa abertura conceitual, nem o matrimônio nem a diferenciação dos sexos ou a capacidade procriativa servem de elemento identificador da família. Por conseqüência, não há como ver como entidade familiar somente a união estável entre pessoas de sexos opostos.

Não se diferencia mais a família pela ocorrência do casamento. Também a existência de prole não é essencial para que a convivência mereça reconhecimento e proteção constitucional, pois sua falta não enseja sua desconstituição. Como filhos ou capacidade procriativa não são essenciais para que a convivência de duas pessoas mereça a proteção legal, não se justifica deixar de abrigar, sob o conceito de família, as relações homoafetivas. Excepcionar onde a lei não distingue é uma forma cruel de excluir direitos.

Passando duas pessoas, ligadas por um vínculo afetivo, a manter uma relação duradoura, pública e contínua, como se casados fossem, formando um núcleo familiar à semelhança do casamento, mister identificá-la como geradora de efeitos jurídicos independentemente do sexo a que pertencem.

Em face do silêncio do constituinte e da omissão do legislador, deve o juiz cumprir a lei e atender à determinação constante do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil e do art. 126 do Código de Processo Civil. Na lacuna da lei, ou seja, na falta de normatização, precisa o juiz se valer da analogia, costumes e princípios gerais de direito. Nada diferencia tais uniões de modo a impedir que sejam definidas como família. Enquanto não existir um regramento legal específico, mister, no mínimo, a aplicação analógica das regras jurídicas que regulam as relações que têm o afeto por causa: o casamento e as uniões estáveis. A equiparação das uniões homossexuais à união estável, pela via analógica, implica a atribuição de um regime normativo destinado originariamente a situação diversa, ou seja, comunidade formada por um homem e uma mulher. A semelhança aqui presente, autorizadora da analogia, seria a ausência de vínculos formais e a presença substancial de uma comunidade de vida afetiva e sexual duradoura e permanente entre os companheiros do mesmo sexo, assim como ocorre entre os sexos opostos.[19]

A aversão da doutrina dominante e da jurisprudência majoritária de se socorrerem das leis que regem a união estável ou o casamento tem levado singelamente ao reconhecimento da união homossexual como mera sociedade de fato. Sob o fundamento de se evitar enriquecimento injustificado, invoca-se o Direito das Obrigações, o que acaba subtraindo a possibilidade da concessão de um leque de direitos que só existem na esfera do Direito de Família. Presentes os requisitos legais: vida em comum, coabitação, laços afetivos, não se pode deixar de conceder às uniões homoafetivas os mesmos direitos deferidos às relações heterossexuais que tenham idênticas características.

O tratamento diferenciado a situações análogas acaba por gerar profundas injustiças. Como bem adverte Rodrigo da Cunha Pereira, em nome de uma moral sexual dita civilizatória, muita injustiça tem sido cometida. O Direito, como instrumento ideológico e de poder, em nome da moral e dos bons costumes, já excluiu muitos do laço social.[20]

As relações sociais são dinâmicas. Totalmente descabido continuar pensando a sexualidade com preconceitos, com conceitos fixados pelo conservadorismo do passado e encharcados da ideologia machista e discriminatória, própria de um tempo já totalmente ultrapassado pela história da sociedade humana. Necessário é pensar com institutos jurídicos modernos, que estejam à altura da sociedade dos dias atuais.

Se duas pessoas passam a ter vida em comum, cumprindo os deveres de assistência mútua, em um verdadeiro convívio estável caracterizado pelo amor e respeito mútuo, com o objetivo de construir um lar, inquestionável que tal vínculo, independentemente do sexo de seus participantes, gera direitos e obrigações que não podem ficar à margem da lei.

Não é ignorando a realidade, deixando-a à margem da sociedade e fora do Direito, que irá desaparecer a homossexualidade. Impositivo o reconhecimento de uma união estável entre pessoas do mesmo sexo. Como diz Teixeira Giorgis: De fato, ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo de alguém, em função de sua orientação sexual, seria dispensar tratamento indigno ao ser humano, não se podendo ignorar a condição pessoal do indivíduo, legitimamente constitutiva de sua identidade pessoal, em que aquela se inclui.[21]

Mais do que uma sociedade de fato, trata-se de uma sociedade de afeto, o mesmo liame que enlaça os parceiros heterossexuais. Bem questiona Paulo Luiz Lôbo: Afinal, que ‘sociedade de fato’ mercantil ou civil é essa que se constitui e se mantém por razões de afetividade, sem interesse de lucro?[22]

Não se pode falar em homossexualidade sem pensar em afeto. Enquanto a lei não acompanha a evolução da sociedade, as mudanças de mentalidade, a evolução do conceito de moralidade, ninguém tem o direito de fechar os olhos e assumir uma postura preconceituosa ou discriminatória, para não enxergar essa nova realidade. Os aplicadores do Direito não podem ser fonte de grandes injustiças. Descabe confundir as questões jurídicas com as questões morais e religiosas. É necessário mudar valores, abrir espaços para novas discussões, revolver princípios, dogmas e preconceitos.


6. Direito à diferença

As normas legais precisam adequar-se aos princípios e garantias consagradas pela Carta Política, que retrata a vontade geral do povo. O núcleo do sistema jurídico, que sustenta a própria razão de ser do Estado, deve garantir muito mais liberdades do que promover invasões ilegítimas na esfera pessoal do cidadão.

O fato de não haver regra legal a regular alguma situação posta em julgamento não significa inexistência de direito à tutela jurídica. Ausência de lei não quer dizer ausência de direito, e nem impede que se extraiam efeitos. A falta de previsão específica nos regramentos legislativos não pode servir de justificativa para negar a prestação jurisdicional ou de motivo para deixar de reconhecer a existência de direitos. O silêncio do legislador precisa ser suprido pelo juiz, que cria a lei para o caso que se apresenta a julgamento. Na omissão legal, deve o juiz se socorrer da analogia, dos costumes e princípios gerais de direito.

Ainda que o preconceito faça com que os relacionamentos homossexuais recebam o repúdio de segmentos conservadores, o movimento libertário que transformou a sociedade acabou por mudar o próprio conceito de família. A homossexualidade existe, sempre existiu, e cabe à Justiça emprestar-lhe visibilidade. Em nada se diferenciam os vínculos heterossexuais e os homossexuais que tenham o afeto como elemento estruturante.

O legislador intimida-se na hora de assegurar direitos às minorias alvo da exclusão social. A omissão da lei dificulta o reconhecimento de direitos, sobretudo frente a situações que se afastam de determinados padrões convencionais, o que faz crescer a responsabilidade da Justiça. Preconceitos e posições pessoais não podem levar o juiz a fazer da sentença meio de punir comportamentos que se afastam dos padrões por ele aceitos como normais. Igualmente não cabe invocar o silêncio da lei para negar direitos a quem vive fora do modelo imposto pela moral conservadora, mas que não agride a ordem social e não traz prejuízo a ninguém.



7. Uma justiça diferente

As uniões de pessoas com a mesma identidade sexual, ainda que sem lei, foram à Justiça reivindicar direitos. Mais uma vez o Judiciário foi chamado a exercer a função criadora do direito. O caminho que lhes foi imposto já é conhecido. As uniões homossexuais tiveram que trilhar o mesmo iter imposto às uniões extramatrimoniais. Em face da resistência de ver a afetividade nas relações homossexuais, foram elas relegadas ao campo obrigacional e rotuladas de sociedades de fato, a dar ensejo a mera partilha dos bens amealhados durante o período de convívio. Ainda assim, era necessária a prova da efetiva participação na sua aquisição.[23]

O receio de comprometer o sacralizado conceito do casamento, limitado à idéia de procriação e, por conseqüência, da heterossexualidade do casal, não permitia que se inserissem as uniões homoafetivas no âmbito do Direito de Família. Havia dificuldade de reconhecer que a convivência está centrada no vínculo de afeto, o que impedia fazer analogia dessas uniões com o instituto da união estável. Afastada a identidade familiar, nada mais era concedido além de uma pretensa repartição do patrimônio comum. Alimentos, pretensão sucessória, eram rejeitados sob a alegação de impossibilidade jurídica do pedido.

As uniões homossexuais, quando reconhecida sua existência, ficavam relegadas ao Direito das Obrigações. Chamadas de sociedades de fato, limitava-se a Justiça a conferir-lhes seqüelas de ordem patrimonial. Logrando um dos sócios provar sua efetiva participação na aquisição de bens amealhados durante o período de convívio, era determinada a partição do patrimônio, operando-se verdadeira divisão de lucros. Reconhecidas como relações de caráter comercial, as controvérsias eram julgadas pelas varas cíveis.

A mudança começou na Justiça gaúcha, que, ao definir a competência dos juizados especializados da família para apreciar as uniões homoafetivas, as inseriu no âmbito do Direito de Família, como entidades familiares. Cabe sinalar que o Poder Judiciário do Rio Grande do Sul possui uma estrutura diferenciada. A divisão de competência por matérias existe também no segundo grau de jurisdição, entre os órgãos colegiados do Tribunal de Justiça. Essa peculiaridade evidencia o enorme significado do deslocamento das ações sobre as uniões de pessoas do mesmo sexo das varas cíveis para os juízos de família. Esse, com certeza, foi o primeiro grande marco que ensejou a mudança de orientação da jurisprudência rio-grandense.[24] A definição da competência das varas de família para o julgamento das ações envolvendo as uniões homossexuais provocou o envio de todas as demandas que tramitavam nos juizados cíveis para a jurisdição de família. Também os recursos migraram para as câmaras que detêm competência para apreciar essa matéria.

Trazendo a ação como fundamento jurídico as normas de Direito de Família, a tendência era o indeferimento da petição inicial. Reconhecida a impossibilidade jurídica do pedido, era decretada a carência de ação. O processo era extinto em seu nascedouro, por ser considerado impossível o pedido do autor. Essa foi a decisão proferida em ação de petição de herança, cujo recurso,[25] invocando os princípios constitucionais que vedam a discriminação entre os sexos, por unanimidade de votos, reformou a sentença. Como a inicial descrevia a existência de um vínculo familiar foi afirmada a possibilidade jurídica do pedido, e determinado o prosseguimento da ação. Essa decisão, de forma clara, sinalizou o caminho para a inserção, no âmbito do Direito de Família, das uniões homoafetivas como entidade familiar, invocando a vedação constitucional de discriminação em razão do sexo.

A primeira decisão da Justiça brasileira que deferiu herança ao parceiro do mesmo sexo também é da justiça especializada do Rio Grande do Sul.[26] A mudança de rumo foi de enorme repercussão, pois retirou o vínculo afetivo homossexual do Direito das Obrigações, em que era visto como simples negócio, um relacionamento com exclusivo objetivo comercial e com fins meramente lucrativos. Esse equivocado enquadramento evidenciava postura conservadora e discriminatória, pois não conseguia ver a existência de um vínculo afetivo na sua origem.

Como o Direito de Família se justifica pela afetividade, fazer analogia com esse ramo do Direito significa reconhecer a semelhança entre as relações familiares e as homossexuais. Assim, pela primeira vez, a Justiça emprestou relevância ao afeto como elemento de identificação para reconhecer a natureza familiar das uniões homoafetivas. O Relator, Desembargador José Carlos Teixeira Giorgis, em longo e erudito voto, invocando os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade, concluiu que o respeito à orientação sexual é aspecto fundamental para a sua afirmação. Na esteira dessa decisão, encorajaram-se outros tribunais e, com freqüência, são noticiados novos julgamentos adotando posicionamento idêntico.

A possibilidade de ser reconhecida como relação jurídica, em sede de medida cautelar de justificação, a convivência de um casal de mulheres para prevenir futuras controvérsias foi outro significativo avanço. Havendo sido indeferida a inicial, foi provido o recurso,[27] sob o fundamento de que a prova da convivência efetiva seria da maior importância na eventualidade de ruptura da vida em comum, com vista à apuração de resultado patrimonial.

Em outra demanda, foi afirmada a possibilidade do uso da ação de carga eficacial meramente declaratória da existência da relação homossexual. Mesmo não havendo controvérsia entre as autoras sobre a existência da relação, restou reconhecido o interesse de agir com finalidade de prevenir futuras discussões.[28]

A ausência de herdeiros sucessíveis levou o companheiro sobrevivente a disputar a herança que, na iminência de ser declarada vacante, seria recolhida ao município. Em sede de embargos infringentes, foram deferidos direitos sucessórios ao companheiro pelo voto de Minerva do Vice-Presidente do Tribunal.[29]

Recente julgamento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul,[30] por decisão unânime, determinou a partilha de bens, reconhecendo como união estável a convivência pública, contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituir verdadeira família, por quase cinco anos, observados os deveres de lealdade, respeito e mútua assistência entre as partes.

Merece ser louvada a coragem de ousar quando se ultrapassam os tabus que rondam o tema da sexualidade e se rompe o preconceito que persegue as entidades familiares homoafetivas. Houve um verdadeiro enfrentamento a toda uma cultura discriminatória e uma oposição à jurisprudência ainda apegada a um conceito conservador de família. Essa nova orientação mostra que o Judiciário tomou consciência de sua missão de criar o direito. Não é ignorando certos fatos, deixando determinadas situações a descoberto do manto da juridicidade, que se faz justiça. Condenar à invisibilidade é a forma mais cruel de gerar injustiças, afastando-se o Estado do dever de cumprir com sua obrigação de conduzir o cidadão à felicidade.

É um marco significativo a inserção das relações homoafetivas no âmbito do Direito de Família como entidades familiares. Na medida em que se consolida a orientação jurisprudencial, emprestando efeitos jurídicos às uniões de pessoas do mesmo sexo, começa a se alargar o espectro de direitos reconhecidos aos parceiros quando do desfazimento dos vínculos de convivência. Inúmeras outras decisões despontam no panorama nacional a mostrar a necessidade de se cristalizar uma orientação que motive o legislador a regulamentar situações que não mais podem ficar à margem da Justiça.

Consagrar os direitos em regras legais talvez seja a maneira mais eficaz de romper tabus e derrubar preconceitos. Mas, enquanto a lei não vem, é o Judiciário que deve suprir a lacuna legislativa, mas não por meio de julgamentos permeados de preconceitos ou restrições morais de ordem pessoal.

Não mais cabe deixar de arrostar a realidade do mundo de hoje.

Necessário ter uma visão plural das estruturas familiares e inserir no conceito de família os vínculos afetivos que, por envolverem mais sentimento do que vontade, merecem a especial proteção que só o Direito de Família consegue assegurar.

O caminho está aberto, e imperioso que os juízes cumpram com sua verdadeira missão, que é fazer justiça. Acima de tudo, precisam ter sensibilidade para tratar de temas tão delicados como as relações afetivas, cujas demandas precisam ser julgadas com mais sensibilidade e menos preconceito. Uma maior atenção à justiça, à igualdade e ao humanismo deve presidir as decisões judiciais.

Há muito já caiu a venda que tapava os olhos da Justiça. O símbolo da imparcialidade não pode servir de empecilho para o reconhecimento de que a diversidade necessita ser respeitada. Não mais se concebe conviver com a exclusão e com o preconceito.

A Justiça não é cega nem surda. Precisa ter os olhos abertos para ver a realidade social e os ouvidos atentos para ouvir o clamor dos que por ela esperam. Mister que os juízes deixem de fazer suas togas de escudos para não enxergar a realidade, pois os que buscam a Justiça merecem ser julgados, e não punidos.



(Artigo publicado na obra coletiva Curso de Direito de Família, coordenada por Douglas Phillips Freitas, Vox Legem, Florianópolis, 2004, p. 265-282; e Revista Brasileira de Direito, n. 1, Faculdade Meridional, Passo Fundo-RS, Editora Méritos, 2005, p. 67-84).

[1] BARROS, Sérgio Resende de. Direitos Humanos: Paradoxo da Civilização. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 418.

[2] HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha (tradução de Luís Afonso Heck). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 330.

[3] Art. 5º, inc. I da CF: homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição. Inc. II: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

[4] CARLUCCI, Aída Kemelmajer de. Derecho y homosexualismo en el derecho comparado. In Homossexualidade – Discussões Jurídicas e Psicológicas. Curitiba: Juruá, 2001, p. 24.

[5] RIOS, Roger Raupp. Direitos Fundamentais e Orientação Sexual: o Direito Brasileiro e a Homossexualidade. Revista CEJ do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. Brasília. dez. 1998. nº 6. p. 29.

[6] GIORGIS, José Carlos Teixeira. A Natureza Jurídica da Relação Homoerótica. In Revista da AJURIS, n. 88, – Tomo 1. Porto Alegre: dezembro de 2002, p. 244.

[7] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades Familiares Constitucionalizadas: para além do numerus clausus. Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família. Família e cidadania – o novo CCB e a vacatio legis. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 101

[8] VELOSO, Zeno. Homossexualidade e Direito. Jornal O Liberal, de Belém do Pará, em 22.5.1999.

[9] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades Familiares Constitucionalizadas: para além do numerus clausus. Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família. Família e cidadania – o novo CCB e a vacatio legis. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 95.

[10] SUANNES, Adauto. As Uniões Homossexuais e a Lei 9.278/96. COAD. Ed. Especial out/nov. 1999. p. 32.

[11] § 2º do art. 5º da Constituição Federal: Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou nos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

[12] RIOS, Roger Raupp. Direitos Fundamentais e Orientação Sexual: o Direito Brasileiro e a Homossexualidade. Revista CEJ do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. Brasília. dez. 1998. nº 6, p. 35.

[13] BARROS, Sérgio Resende de. Direitos Humanos: Paradoxo da Civilização. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 431.

[14] DIAS, Maria Berenice. União Homossexual, o Preconceito e a Justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 17.

[15] FACHIN, Luiz Edson. Elementos Críticos do Direito de Família: Curso de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 95.

[16] RIOS, Roger Raupp. Direitos Fundamentais e Orientação Sexual: o Direito Brasileiro e a Homossexualidade. Revista CEJ do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. Brasília. dez. 1998. nº 6, p. 34.

[17] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 46.

[18] DIAS, Maria Berenice. União Homossexual, o Preconceito e a Justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 17.

[19] RIOS, Roger Raupp. A Homossexualidade no Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado/Esmafe, 2000, p. 122.

[20] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. A Sexualidade Vista pelas Tribunais. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 281.

[21] GIORGIS, José Carlos Teixeira. A Natureza Jurídica da Relação Homoerótica. In Revista da AJURIS, nº 88 – Tomo 1. Porto Alegre: dezembro de 2002, p. 244.

[22] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades Familiares Constitucionalizadas: para além do numerus clausus. Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família. Família e cidadania – o novo CCB e a vacatio legis. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 100.

[23] DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade: o que diz a Justiça! Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 17.

[24] Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Agravo de Instrumento nº 599 075 496, Oitava Câmara Cível, Relator o Des. Breno Moreira Mussi. Data do julgamento: 17/6/1999. A íntegra do acórdão encontra-se em minha obra “Homoafetividade, o que diz a Justiça!”, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

[25] Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível nº 598 362 655, Oitava Câmara Cível, Relator o Des. José Ataídes Siqueira Trindade. Data do julgamento: 01/3/2000. A íntegra do acórdão encontra-se em minha obra “Homoafetividade, o que diz a Justiça!”, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

[26] Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível nº 70001388982, Sétima Câmara Cível, Relator o Des. José Carlos Teixeira Giorgis. Data do julgamento: 14/3/2001. A íntegra do acórdão encontra-se em minha obra “Homoafetividade, o que diz a Justiça!”, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

[27] Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível nº 70002355204, Sétima Câmara Cível, Relator o Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. Data do julgamento: 11/4/2001. A íntegra do acórdão encontra-se em minha obra “Homoafetividade, o que diz a Justiça!”, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

[28] Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível nº 70005733845, Segunda Câmara Especial Cível, Relator o Dr. Luiz Roberto Imperatore de Assis Brasil. Data do julgamento: 20/3/2003. A íntegra do acórdão encontra-se em minha obra “Homoafetividade, o que diz a Justiça!”, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

[29] Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Embargos Infringentes nº 70003967676, 4º Grupo de Câmaras Cíveis de Porto Alegre, Relator o Des. Sérgio Fernando de Vasconcelos Chaves. Data do julgamento: 09/5/2003. A íntegra do acórdão encontra-se em minha obra “Homoafetividade, o que diz a Justiça!”, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

[30] Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível nº 70005488812, Sétima Câmara Cível, Relator o Des. José Carlos Teixeira Giorgis. Data do julgamento: 25/6/2003. A íntegra do acórdão encontra-se em minha obra “Homoafetividade, o que diz a Justiça!”, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

Nenhum comentário: