quinta-feira, 3 de julho de 2008

Oscar Wilde e a luta pelos direitos homossexuais


A condenação do escritor pela opção sexual está na raiz da luta antipreconceito

(João Silvério Trevisan)
http://blog.controversia.com.br/2007/08/07/oscar-wilde-e-a-luta-pelos-direitos-homossexuais/

Quando Oscar Wilde irrompeu na cena intelectual e mundana da Londres dos anos 1880, o amor entre pessoas do mesmo sexo gerava uma vaga consciência social. Sua existência era mais conhecida por termos eufemísticos como “sodomia”, “pecado nefando”, “uranismo” ou “pederastia”. Anos antes, em 1869, na Alemanha, essa prática sexual fora batizada com o nome científico de “homossexualismo”, por um médico que seria ele próprio homossexual. O objetivo do criador do conceito era apresentar a atração pelo mesmo sexo como natural e não adquirida. Visava assim a afastar a culpabilidade (e a punição) por sua prática. Mas esse termo científico demorou para entrar no vocabulário popular. Foi muito mais rapidamente absorvido pela psiquiatria. De pecado, o amor entre pessoas do mesmo sexo se tornou desvio moral e doença. Sua condenação se transferiu do campo da religião para o da ciência, de modo que os padres foram substituídos por médicos e juízes, que ora tentavam curar, ora julgavam segundo a lei.

Durante seu acidentado julgamento, em 1895, Oscar Wilde negou sistematicamente sua vida homossexual. Mas a partir do momento em que foi acuado com provas irrefutáveis, tomou a defesa do amor que praticava. Ao ser inquirido pela promotoria, Wilde respondeu com um dos textos mais corajosos e contundentes em defesa da prática homossexual: “Esse amor é a grande afeição de um homem mais velho por um homem mais jovem, como aquela que houve entre Davi e Jônatas, o amor que Platão tornou a base de sua filosofia, o amor que se pode achar nos sonetos de Miguel Ângelo e Shakespeare. Tal amor é tão mal compreendido neste século que se admite descrevê-lo como o ‘amor que não ousa dizer seu nome’. Ele é bonito, é bom, é a mais nobre forma de afeição. Não há nada nele que seja antinatural. Ele é intelectual, e repetidamente tem existido entre um homem mais velho e um homem mais novo, quando o mais velho tem o intelecto e o mais jovem tem toda a alegria, a esperança e o encanto da vida à sua frente. O mundo não compreende que seja assim. Zomba dele e às vezes, por causa dele, coloca alguém no pelourinho.” Não há registros de que Oscar Wilde tenha se manifestado explicitamente contra a opressão sofrida pelo então chamado “terceiro sexo”. Mas ele ousou tematizá-lo em sua obra, freqüentemente acusada de pervertida - como foi o caso de O retrato de Dorian Gray . E é sobretudo esse seu discurso no tribunal que permanece como uma eloqüente afirmação do direito de amar contra a corrente.

Após o julgamento, Oscar Wilde foi condenado a dois anos de trabalhos forçados na prisão de Reading, por prática de “indecência grave”. A acusação se baseava numa emenda ao Código Penal que visava a proteger moças de ataques sexuais e prostituição. Mas, por causa dos seus termos vagos, a emenda acabou abrangendo “atos indecentes” em geral, nos quais se incluíam de modo privilegiado as relações entre pessoas do mesmo sexo, ainda que adultas e consensuais. Cumprida a pena e libertado em maio de 1897, Oscar Wilde partiu diretamente para o exílio em Paris, falido, solitário e fisicamente destroçado. Aí viveu ajudado por amigos, morando em hotéis baratos, até sua morte em 30 de novembro de 1900, aos 46 anos. Foi inicialmente enterrado como indigente. Ainda durante o julgamento, sua família abandonara a Inglaterra, com destino à Suíça, onde seus filhos tiveram o sobrenome Wilde substituído por Holland, para fugir da desonra.

Esse episódio escandaloso da Era Vitoriana teve repercussão internacional, e seu eco se faria ouvir por muitas décadas adiante. De fato, a condenação de Wilde aterrorizou várias gerações de homossexuais em todo mundo. Mais que isso, criou um grave precedente de estereotipia: homossexuais passaram a ser universalmente vistos como efeminados, viciados e decadentes, além de corruptores da juventude. Mas, paradoxalmente, seu julgamento também tornou pública a existência de uma subcultura gay em estruturação, pelo menos nas grandes cidades. A ampla exposição na imprensa ofereceu, bem ou mal, uma maior visibilidade sobre um grupo social clandestino, permitindo que inúmeros homossexuais tivessem melhor conhecimento de sua existência e com ele pudessem se identificar. Assim, o nome de Oscar Wilde se tornou, ele próprio, um signo de identificação. Tal fenômeno é notável no caso do nosso João do Rio, discípulo assumido de Wilde, a quem chamava de Grande Poeta e de quem traduziu várias obras para o português.

Mas há motivos para crer que a condenação de Wilde repercutiu também como uma espécie de gota d´água entre redutos mais politicamente conscientes da necessidade de libertar o amor de preconceitos culturais e religiosos. Por esse período, a pauta dos direitos homossexuais começou a se instaurar nos meios socialistas de vários países. Na Alemanha, já a partir de 1895, Eduard Bernstein e W. Herzen discutiram o caso Wilde diretamente nas páginas do jornal do Partido Social Democrata. Na Inglaterra, gente como Bernard Shaw se manifestou com veemência em defesa de Wilde. Outros, como Edward Carpenter e Havelock Ellis, passaram a discutir a publicamente a liberdade de escolha das pessoas “uranistas”.

Nesse contexto, está longe de parecer mera coincidência que em 1897, mesmo ano em que Wilde terminou de cumprir sua pena, um médico alemão chamado Magnus Hirschfeld criou em Berlim a primeira organização de luta pelos direitos homossexuais de que se tem notícia. A partir de 1919, o grupo passou a se chamar Comitê Humanitário e Científico, acoplado ao Instituto de Ciência Sexual, que se dedicava a estudos de homossexualismo e travestismo. Segundo o Anuário do Comitê, seu objetivo era conseguir apoio do legislativo para abolir do Código Penal alemão o famoso parágrafo 175, que punia relações homossexuais, e para “interessar os próprios homossexuais na luta por seus direitos”.

Além de promover palestras por toda parte, a começar pelo próprio Reichstag (Câmara dos Deputados), o Comitê produziu filmes sobre a questão homossexual, o mais famoso deles é Anders als die andern (”Diverso entre os diversos”), de 1919, do qual sobraram apenas resquícios. ? O entusiasmo era tal que em toda a Alemanha chegaram a existir 25 sucursais do Comitê Humanitário. Em 1920, havia no país mais de 20 jornais dirigidos ao público homossexual masculino, além de quatro exclusivamente para lésbicas e uma revista para cultores do sadomasoquismo. Tão intensa era a vida homossexual em Berlim que, em 1922, inaugurou-se o Eros Theater, exclusivo para espetáculos de temática homoerótica. As campanhas pela reforma sexual promovidas pelo Comitê alemão obtiveram ampla repercussão, recebendo apoio de gente famosa como Thomas Mann, Lou Andreas Salomé, Herman Hesse e Rainer Maria Rilke, entre outras 6.000 assinaturas. Suas atividades se espalharam pela Inglaterra, Áustria, Holanda, Itália e Tchecoslováquia, onde se organizaram outros grupos liberacionistas.

Entre os eventos internacionais integrados pelo Comitê Humanitário e Científico, ocorreram vários congressos para reforma sexual dos códigos penais. O primeiro aconteceu em 1921, na capital alemã. Em 1928, durante o 2º Congresso, ocorrido em Copenhague, fundou-se a Liga Mundial pela Reforma Sexual. O congresso seguinte foi organizado no ano de 1929, em Londres, tendo Bertrand Russel como delegado inglês. O último ocorreu em Viena, 1930. No seu auge, a Liga contou com 130.000 afiliados no mundo todo. Os liberacionistas homossexuais, que em sua grande maioria eram socialistas, transformaram o apelo de Marx e lançaram seu próprio lema: “Uranistas do mundo todo, uni-vos”. Infelizmente, o movimento foi dizimado a partir da ascensão do nazismo, em 1933, sendo o próprio parágrafo 175 revigorado, enquanto homossexuais eram caçados e mandados para campos de concentração. A antiga condenação sofrida individualmente por Oscar Wilde se generalizou, então, para multidões de “degenerados”.

Paradoxalmente, o maior legado de Wilde às vindouras gerações de homossexuais ocorreu através e a partir da dolorosa derrota. Em todo o mundo, sua figura exerceu um importante papel na construção de um processo identitário homossexual. Ninguém até então tinha sido tão amplamente identificado enquanto homossexual: graças ao processo judicial sua identidade e homossexualidade se imbricaram num único todo. Assim, deflagrou-se o início do que mais tarde seria definido como “consciência homossexual”. Isso permite dizer que Oscar Wilde talvez tenha sido o primeiro moderno homossexual do planeta, fator que o torna tão atual. Em resumo, o caso Oscar Wilde teve o importante papel de permitir o nascimento de uma identidade homossexual. Seu julgamento, que aterrorizou várias gerações de homossexuais, a longo prazo também cristalizou a identidade do desejo homossexual nos termos em que o conhecemos até hoje. Essa foi, seguramente, uma contribuição imensurável para a eclosão do moderno movimento homossexual, tal como ocorrida na cidade de Nova York, em 28 de junho de 1969. Multidões de homossexuais reagiram contra a violência policial, queimando carros e gritando palavras-de-ordem, num ato sem precedentes, que ficou conhecido como Rebelião de Stonewall. Por detrás dela paira, ironicamente, a imagem de Oscar Wilde.

João Silvério Trevisan é professor, escritor e ativista dos direitos pró-homossexuais

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