domingo, 6 de julho de 2008

Homoafetividade e o direito à diferença





Maria Berenice Dias

Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM


Sumário: 1. Liberdade e igualdade; 2. Direito à sexualidade; 3. Família e afetividade; 4. Homoafetividade; 5. Uniões homoafetivas; 6. Direito à diferença; 7. Uma justiça diferente.


1. Liberdade e igualdade

A regra maior da Constituição brasileira é o respeito à dignidade humana, servindo de norte ao sistema jurídico nacional. A dignidade humana é a versão axiológica da natureza humana.[1] Esse valor importa em dotar os princípios da igualdade e da isonomia de potencialidade transformadora de todas as relações jurídicas. Igualdade jurídica formal é igualdade diante da lei, como bem explicita Konrad Hesse: o fundamento de igualdade jurídica deixa-se fixar, sem dificuldades, como postulado fundamental do estado de direito.[2]

O Estado Democrático de Direito tem por pressuposto assegurar a dignidade da pessoa humana, conforme expressamente proclama o art. 1º, inciso III, da Constituição Federal. Esse compromisso do Estado assenta-se nos princípios da igualdade e da liberdade, sendo consagrados já no preâmbulo da norma maior do ordenamento jurídico. Concede proteção a todos, vedando discriminação e preconceitos por motivo de origem, raça, sexo ou idade. Assegura o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...).

O art. 5º da Carta Constitucional, ao elencar os direitos e garantias fundamentais, proclama: todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Garante o mesmo dispositivo, modo expresso, o direito à liberdade e à igualdade. Repetitivos são os seus dois primeiros incisos,[3] ao enfatizar a igualdade entre o homem e a mulher e vedar que alguém seja obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

Mas de nada adianta assegurar respeito à dignidade humana e à liberdade. Pouco vale afirmar a igualdade de todos perante a lei, dizer que homens e mulheres são iguais, que não são admitidos preconceitos ou qualquer forma de discriminação. Enquanto houver segmentos alvos da exclusão social, tratamento desigualitário entre homens e mulheres, enquanto a homossexualidade for vista como crime, castigo ou pecado, não se está vivendo em um Estado Democrático de Direito.


2. Direito à sexualidade

A sexualidade integra a própria condição humana. É um direito humano fundamental que acompanha o ser humano desde o seu nascimento, pois decorre de sua própria natureza. Como direito do indivíduo, é um direito natural, inalienável e imprescritível. Ninguém pode se realizar como ser humano, se não tiver assegurado o respeito ao exercício da sexualidade, conceito que compreende tanto a liberdade sexual como a liberdade de livre orientação sexual. O direito a tratamento igualitário independente da tendência sexual. A sexualidade integra a própria natureza humana e abrange a dignidade humana. Todo ser humano tem o direito de exigir respeito ao livre exercício da sexualidade. Sem liberdade sexual, o indivíduo não se realiza, tal como ocorre quando lhe falta qualquer outra das chamadas liberdades ou direitos fundamentais.

Aída Kemelmajer de Carlucci comunga do mesmo entendimento. El derecho a la livre determinación de cada uno es considerado hoy un derecho humano. La circunstancia de que no este mencionado en el catálogo que contienen los tratados nacionales e internacionales sobre derechos humanos no significa que no exista. Así como existe un derecho a la livre determinación de los pueblos, existe un derecho a la livre determinación del individuo.[4]

As normas constitucionais que consagram o direito à igualdade proíbem discriminar a conduta afetiva no que respeita à inclinação sexual. A discriminação de um ser humano em virtude de sua orientação sexual constitui, conforme afirma Roger Raupp Rios, precisamente, uma hipótese (constitucionalmente vedada) de discriminação sexual.[5] Rejeitar a existência de uniões homossexuais é afastar o princípio insculpido no inciso IV do art. 3º da Constituição Federal: é dever do Estado promover o bem de todos, vedada qualquer discriminação, não importa de que ordem ou tipo. Conforme José Carlos Teixeira Giorgis: A relação entre a proteção da dignidade da pessoa humana e a orientação homossexual é direta, pois o respeito aos traços constitutivos de cada um, sem depender da orientação sexual, é previsto no artigo 1º, inciso 3º, da Constituição, e o Estado Democrático de Direito promete aos indivíduos, muito mais que a abstenção de invasões ilegítimas de suas esferas pessoais, a promoção positiva de suas liberdades.[6]

A orientação sexual adotada na esfera de privacidade não admite restrições. Qualquer interferência configura afronta à liberdade fundamental, a que faz jus todo ser humano, no que diz com sua condição de vida.

Como todos os segmentos alvos do preconceito e da discriminação social, as relações homossexuais sujeitam-se à deficiência de normação jurídica, sendo deixados à margem da sociedade e à míngua do Direito.


3. Família e afetividade

Segundo os valores culturais e principalmente as influências religiosas dominantes em cada época, a tendência é de engessamento dos vínculos afetivos. No mundo ocidental, tanto o Estado como a Igreja buscam limitar o exercício da sexualidade ao casamento. A Igreja identifica o casamento como um sacramento, e o Estado o nomina de instituição. Acaba sendo regulado não só o casamento, mas a própria postura dos cônjuges. A lei impõe-lhes deveres e assegura direitos de natureza pessoal, além de estabelecer seqüelas de ordem patrimonial.

O casamento inicialmente era indissolúvel. A família tinha um perfil conservador, era uma entidade matrimonializada, patriarcal, patrimonializada, indissolúvel, hierarquizada e heterossexual. O vínculo que nascia da livre vontade dos nubentes era mantido independente e até contra a vontade dos cônjuges. Mesmo com o advento da Lei do Divórcio, a separação e o divórcio só são deferidos mediante a identificação de um culpado ou quando decorridos determinados prazos. Do mesmo modo, quem não tem motivo para atribuir ao outro a culpa pelo fim do casamento não pode tomar a iniciativa do processo de separação. O estabelecimento de todos esses condicionamentos evidencia a intenção do legislador de punir quem simplesmente não mais quer continuar casado.

A dificuldade de as relações extramatrimoniais serem identificadas como verdadeiras famílias revelava a tendência em sacralizar o conceito de casamento. Mesmo inexistindo qualquer diferença estrutural com os relacionamentos oficializados, a sistemática negativa de estender a esses novos arranjos os regramentos do direito familiar, nem ao menos por analogia, mostrava a tentativa de preservação da instituição da família dentro dos padrões convencionais. Os relacionamentos que fugissem ao molde legal, além de não adquirir visibilidade, estavam sujeitos a severas sanções. Chamados de marginais, os vínculos afetivos extramatrimoniais nunca foram reconhecidos como família. Primeiro se procurou identificá-los com uma relação de natureza trabalhista, e só se via labor onde existia amor. Depois, a jurisprudência passou a permitir a partição do patrimônio, considerando uma sociedade de fato o que nada mais era do que uma sociedade de afeto.

Mesmo depois de a Constituição Federal haver albergado no conceito de entidade familiar o que chamou de “união estável”, resistiram os juízes em inserir o instituto no âmbito do Direito de Família. Apesar dos protestos da doutrina, as uniões estáveis foram mantidas no campo do Direito das Obrigações. Como bem adverte Paulo Lôbo, não há necessidade de degradar a natureza pessoal de família convertendo-a em fictícia sociedade de fato, como se seus integrantes fossem sócios de empreendimento lucrativo. E conclui: Os conflitos decorrentes das entidades familiares explícitas ou implícitas devem ser resolvidos à luz do Direito de Família e não do Direito das Obrigações, tanto os direitos pessoais quanto os direitos patrimoniais e os direitos tutelares.[7]

Com o influxo do Direito Constitucional, o Direito de Família foi alvo de uma profunda transformação, que ocasionou uma verdadeira revolução ao banir injustificáveis discriminações. Num único dispositivo o constituinte espancou séculos de hipocrisia e preconceito.[8] Foi derrogada toda a legislação que hierarquizava homens e mulheres, bem como eliminadas as diferenciações entre os filhos, além de ter havido o alargamento do conceito de família para além do casamento.

A Constituição Federal, ao outorgar proteção à família, independentemente da celebração do casamento, vincou um novo conceito, o de entidade familiar, albergando vínculos afetivos outros. No entanto, é meramente exemplificativo o enunciado constitucional ao fazer referência expressa somente à união estável entre um homem e uma mulher e às relações de um dos ascendentes com sua prole. O caput do art. 226 é cláusula geral de inclusão, não sendo admissível excluir qualquer entidade que preencha os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade, conforme afirma Paulo Luiz Lôbo.[9]

Pluralizou-se o conceito de família, que não mais se identifica pela celebração do matrimônio. Não há como afirmar que o art. 226, § 3º, da Constituição Federal, ao mencionar a união estável formada entre um homem e uma mulher, reconheceu somente essa convivência como digna da proteção do Estado. O que existe é uma simples recomendação em transformá-la em casamento. Em nenhum momento é dito não existirem entidades familiares formadas por pessoas do mesmo sexo. Exigir a diferenciação de sexos do casal para merecer a proteção do Estado é fazer distinção odiosa,[10] postura nitidamente discriminatória, que contraria o princípio da igualdade, ignorando a vedação de diferenciar pessoas em razão de seu sexo.

A proibição de se conceder tratamento discriminatório não tem exclusivamente assento constitucional. Como preceitua o § 2º do art. 5º da CF,[11] são recepcionados por nosso ordenamento jurídico os tratados e convenções internacionais objeto de referendo. Entre tais normatizações, a ONU tem entendido como ilegítima qualquer interferência na vida privada de homossexuais adultos, seja com base no princípio de respeito à dignidade humana, seja pelo princípio da igualdade.[12]

A orientação que alguém imprime na esfera da sua vida privada não admite restrições. Pior do que o não-reconhecimento é a discriminação, como lembra Sérgio Resende de Barros, referindo que, do direito ao afeto humano, decorre o direito de repelir o desafeto, tal como, do direito ao exercício sexual, deflui o direito ao celibato.[13]

Desimporta a identificação do sexo do par, se igual ou diferente, para se emprestarem efeitos jurídicos aos vínculos afetivos, no âmbito do Direito de Família. Atendidos os requisitos legais para a configuração da união estável, necessário que sejam conferidos direitos e impostas obrigações independentemente da identidade ou diversidade de sexo dos conviventes.

A homossexualidade existe, é um fato que se impõe, estando a merecer a tutela jurídica. O estigma do preconceito não pode fazer com que um fato social não se sujeite a efeitos jurídicos. É no mínimo perverso impor às uniões homossexuais a mesma trilha percorrida pela doutrina e pela jurisprudência com relação às relações entre um homem e uma mulher fora do casamento, até o alargamento do conceito de família por meio da constitucionalização da união estável.

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